quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Nova Humanidade

Da minha sacada eu observo a Revolução. Mas ela está ocupada demais para olhar para mim, por enquanto. Respiro fundo e sinto o cheiro acre da fumaça que sobe de vários lugares. A cidade está em chamas. Gritos de terror, gritos de vitória. Tiros. Nem mesmo a seleção de música clássica que vai de Bach à Orff, passando por Wagner, e que se repete indefinidamente no meu aparelho de som consegue vencer a força dramática desses gritos. A cidade geme.E eu aqui das alturas observo. Pode ser que a qualquer momento a Revolução invada meu apartamento. A multidão anda nas ruas como um rio violento, criando braços e penetrando por todas as frestas e fazendo o rio de gente crescer, ou então se tingindo de mais sangue. Eu deveria descer e espontaneamente me juntar a esse coletivo de gente-animal, de homenzinhos à la Rousseau, de uma forma meio estranha porque eles mantém o pacto social e não abraçam o solipsismo que a anarquia parece evocar. Eu duvido, então, e decido ficar aqui para ponderar e contemplar melhor.Prefiro não ser cooptado, assimilado, eu diria, e sim decidir por mim mesmo, assim, mesmo na iminência que invadam meu apartamento (o que pode ser dificultado pelas diversas fechaduras acionadas e os móveis que arrastei até a porta), me sinto seguro aqui. Posso ter um intervalo de folga, já que soube ler os sinais antes que as idéias se materializassem e as pessoas voltassem a achar que fazem a História, e não que são feitas por ela.Uma coisa que e intriga é como num mundo tão desenvolvido como o nosso, paus e pedras conseguem ter tanto apelo. A multidão possui suas armas de fogo, modelos americanos – com que grande parte dos americanos tenta destruir a outra parte, e falo deles apenas como ilustração do que está acontecendo no resto do mundo – mas a força está realmente nestes objetos rudimentares, que me lembram um pouco as imagens de um ataque dos homens neandertais que vi em uma de minhas visitas ao museu de Londres (e como Londres deve estar linda em meio ao caos e às chamas). Parece um déjà vu do filme 2001. Acho que a explicação mais a contento dessa atitude esteja no mesmo princípio que busca hoje recuperar, ainda que de modo não tão bem-sucedido, o poder da foice o do martelo, que fulguram na bandeira que pendurei na minha sacada. Acho que isso também evitou que invadissem meu apartamento, que por tal artimanha parece já ter sido invadido, ou não. Pode ser que eu pense que símbolos antigos vão me proteger de um ataque de forças malignas, poderia também fazer o sinal da cruz, símbolos antigos, que provavelmente só os mais vividos como eu saibam o que significa. Mas não foi para manter a turba afastada que eu a dependurei. Fiquei de fato muito contente que as coisas estivessem acontecendo. Afinal, eu costumava ser um acadêmico que defendia uma posição combatente às idéias do status quo. Mas as coisas são uma nos livros de história, e outra na realidade. Prefiro manter-me como espectador e não como ator, por enquanto. Talvez isso seja uma herança da sociedade do espetáculo. Além disso, percebo que esse paliativo heráldico vai ser temporário. Os símbolos não conseguem ter o apelo que eles costumavam ter, diante do irracionalismo que tomou conta das pessoas, mas isso me dá um pouco mais de tempo para pensar.Mas como foi que as coisas aconteceram? Ah! Como tudo nessa nossa era super-industrial e tecnofilica através de um computador. Afinal, se não fosse pela internet e seus desdobramentos, pouco seria feito, ou melhor, muito tempo seria necessário para a preparação de um multi-estopim. Acho que foi assim que as coisas aconteceram. Foi o que a TV falou. Que as coisas acontecem em todos os lugares. Mas onde serão todos os lugares? Será que eles incluem o interior? O sertão? As prisões? Os clubes de golfes e SPAS especializados? Enfim, aos que faziam piadas que a revolução ia acontecer na Avenida Paulista, ou em Brasília, ou em alguma cidade importante de algum país desenvolvido (até da África os utópicos esperavam algum raiozinho de libertação das amarras do sistema), mas acho que ela partiu de todos estes lugares ao mesmo tempo, de acordo com alguma mensagem codificada enviada para as pessoas certas. Olhando em retrospectiva, percebo que atitudes como o Fórum Social devem ter servido apenas como uma fachada para uma conspiração emancipatória, onde pessoas eram selecionadas, talvez treinadas, colocadas em contato. As cidades-sede devem ter sido onde as explosões tiveram maior impacto. Mas isso são apenas elucubrações. Saberei de fato quando a poeira baixar e a coruja de minerva levantar vôo. O interessante é notar que até os militares, tão amigos da estratégia e das teorias de conspiração foram pegos de surpresa, com as calças arriadas. Acho que os líderes da inteligência estavam dormindo. Ou não tinha ninguém lá. Devem ter sido colocados na reserva pelo ultimo corte de pessoal. Afinal, para o governo, a defesa aos poucos foi se tornando apenas formuláica e um fardo de gastos. Não sei como eles não privatizaram as forças armadas. Vai ver que achavam que Maquiavel estava certo. De qualquer forma, deviam considerá-lo um pouco obsoleto, já que vemos armas obsoletas, falta de preparo do pessoal e uma crença civil generalizada de que as forças armadas mobilizam demais as energias coletivas, a organização coletiva, e isso tinha que ser minado por um recrudescimento no poder do individuo. Pergunte para qualquer jovem na rua: ‘Psiu, quer servir seu país?’ Riem de você, “tá doido, maluco? Quero mais é comprar aquele carrão!” Pelo menos por aqui. Ponto (negativo?) pro solipsismo. Acho que quando as multi-revoltas explodiram, o governo deve ter pensado que deveria ter mandado mais dinheiro para o exército. Bom, não sou nenhum defensor das forças armadas, só estou contando o que estava vendo. Agora, pelo que ouço dos rumores, não existe mais governo, só comissões temporárias, e o que restou do exército se refugia nos fortes e bases. Estranho. Nunca foi segredo para ninguém que tivesse olhos para ver que o século XX foi palco de guerras que só tinham uma explicação: manter a máquina rodando, manter a economia aquecida. Vamos destruir, para reconstruir melhor, claro, vendendo tudo do bom e do melhor, a crédito amigo, de uma amizade duvidosa. Mas com o fim da História e a vitória derradeira, perderam-se os inimigos, e a única forma que sobrou para lutar parecia a concorrência comercial. O inimigo era a concorrência. Nada mais justo que mesmo os países mais bélicos fossem perdendo pessoal e que o próprio caráter institucional do exército o desacreditasse. O pluralismo foi relativizando tudo e fez com que as convicções perdessem mais e mais a força...De certa forma, surpreendente até para mim, mesmo torcendo para que a revolução acontecesse, estou admirado que tudo isso esteja acontecendo. A minha primeira vontade foi o de sentar e escrever um grande ensaio sobre o que está acontecendo e explicar todas as sutilezas dos fatos com uma precisão dialética, mas não acho que seja de qualquer valia. Primeiro, porque como acabei de afirmar, estou para descobrir como todos os elementos se processaram, não estou pronto para lidar com as contingências e elementos incongruentes. A coruja de minerva ainda não levantou vôo. Segundo, porque creio que não haveria muitas pessoas dispostas a publicar, nem muitas dispostas a ler, caso eu conseguisse a publicação. O público acadêmico já não pode mais ser considerado. Os alunos, às ruas e fazem parte da massa. Não todos, é claro. Duvido que em cada lar, em cada clube, associação, instituição, não houvesse certa confusão, certa desorganização e conflito. Será? Nem todos são a favor de se deixar levar pela veia de sangue novo que corria onde antes parecia haver apenas necrose. Afinal, como diria um acadêmico qualquer “desde o momento em que os sujeitos passaram a se conhecer somente como interpretes das instituições, estas adquiriram o aspecto de algo divinamente ordenado.” Quem é Nietzsche hoje em dia pra se bater com Deus? As pessoas mal entendem o que ele escreveu. Ninguém mais consegue entender o martelo, nem o da bandeira, nem o do crepúsculo dos ídolos. Eu não saberia dizer se a revolta começou dentro de casas e foi tomando as ruas ou se começou nas ruas e foi invadindo as casas. Mas com certeza, diferente do que queriam os pacifistas e os dialogistas, a mudança não aconteceu sentando numa sala, bebendo água e apertando mãos. Volto a ressaltar presença dos paus e pedras. O que voa por agora, para lá e para cá não são pombas brancas. Talvez isso seja irrelevante.Mas de qualquer forma, deixou a nós, professores universitários às moscas. Acredito que não vai mais haver universidades, e eu seria um prato cheio para aqueles que costumavam estudar as crises de identidade do sujeito, já que, sendo que me constituí como sujeito desde sempre projetando uma imagem de um outro que eu desejava ser, a dizer, um professor universitário, e em um momento eu atinjo esta auteridade e ela passa a me constituir, dessa forma, o que fazer quando a categoria em que me encaixo deixa de existir? Afinal, um descategorizado. Creio que não seja o único a sentir com essas perguntas, mas é parte do meu treinamento, exatamente como um analista de categorias, que eu me permita criar essa categoria de descategorizado e deixe que ela me defina. Já não importa o que eu seja nesse novo mundo.Mas estou me distraindo em abstrações novamente. Acabo parecendo que estou a falar com meus alunos ainda naquelas salas, minha voz ecoando nas paredes e nas cabeças deles que pareciam estar ali apenas para ecoar. Preciso continuar com meu mapa do futuro que se descortina pela minha janela. Onde estávamos? Quanto tempo haveria já se passado? A turba já não existe mais. Daqui eu vejo agora as pessoas que nas ruas ensinam umas às outras o que elas quiserem ou puderem aprender. Quer aprender a plantar? Vá para um campo e pergunte a quem estiver lá. Você vai aprender em alguns dias os rudimentos do plantio, de como dirigir um trator, de como colher. Quer ficar ali para sempre? Você pode. Mas – isso é algo que não entendo – supondo-se que as pessoas possam fluir livremente entre as coisas do mundo, como suportam o pensamento de ficarem estacionadas em um lugar ou ofício? Pasmem. Elas querem ser pessoas completas. Elas querem experimentar do novo, parecem ter uma sede infinita pelo saber. A escola invadiu as ruas, ou o melhor que havia preso nela, a relação pedagógica o fez. Excelente resultado já que a escola como instituição já estava praticamente falida e desacreditada, como qualquer outra instituição que eu puder enumerar. A ideologia do indivíduo deslocou de tal forma a ideologia do coletivo que até Foucault ficaria impressionado em que pé as coisas chegaram. Olho para a rua de novo, e a visão se distorce, muda. Foram dias ou meses, desde a grande explosão? Será que o que vejo é o que vejo de fato, ou o que gostaria de ver? Aperto o olhos para ver. E ouço ainda a música clássica ao fundo, ou seria o canto das sereias? Vejo as pessoas sentadas em círculo, conversando, varrendo, um rapaz fala, circundado de garotos e garotas mais ou menos da idade dele, tentando fazer um automóvel cuja estrutura parece bastante comprometida funcionar. Provavelmente ensinando aos interessados alguns fundamentos de mecânica. Eu nunca entendi nada de mecânica, mas nunca tive tempo nem interesse de estudar. Talvez eu devesse descer e me juntar à alegre roda... Mas prefiro esperar um pouco mais. Ou será que o garoto está a explicar que aquele objeto era algo que quase levou o mundo a um colapso com as emissões de gás carbônico? Que algumas pessoas trabalhavam a vida toda só pra poder ter um, que milhões morriam por causa dele?. Estou novamente me perdendo em observações metafísicas e racionalizações e esquecendo-me de explicar qual foi meu espanto ao ver as pessoas se mobilizando da forma que eles o fizeram, de forma global e massiva, no multi-estopim. Digo isso porque apesar de ser um dos utópicos de antanho, pouca esperança tinha de ver aquelas pessoas, tão apáticas e ligadas às suas vidinhas, aos seus dramas amorosos, sua crescente incomunicabilidade com os outros, seus desejos acima de qualquer outro desejo, conseguissem de uma hora para outra superar todas essas limitações e se juntar. Com a fragmentação de vento em popa, quem imaginaria? Fragmentação do desejo, da revolta. Tínhamos revolta de todas as cores: as verdes, as cor-de-rosa, as negras... Bem que eu já começava a duvidar da célebre citação que o capitalismo produziria seus próprios coveiros. A impressão que eu tinha era que, se tal coisa fosse acontecer no nível de lama até o pescoço que estávamos, sem quase nenhuma área da vida que ainda se organizava de forma independente ou contrária à lógica do dinheiro, o capitalismo produziria sim, seus coveiros, mas junto com eles, sua festa de velório, com ingressos a preços bem salgados, muitas atrações, muita mídia, e na hora do enterro, seriam utilizadas pás e escavadeiras Unilever-Luois Viton. E daí, pra imaginar o pós-capitalismo como seu irmão gêmeo, ou clone, um passo. Como entender esse repúdio pelo luxo de hoje? Como entender que os primeiros lugares a serem invadidos e o primeiro sangue a ser vertido eram daqueles que resistiam a uma simplificação de posses? Irracionalismo? Explosão de raiva reprimida de pessoas que sempre quiseram entrar e ficaram de fora? Mas por que ao invés de entrarem, eles destruíram a interioridade?

É curioso que mesmo entre aqueles que eu chamava de meus alunos, em que acabava de certa forma colocando certas idéias e despertando certas paixões, em quem depositava certa confiança... Nem eles conseguiam se organizar, trabalhar em equipes, deixavam-se levar por batalhas de personalidades, pelo apelo do que o mercado tinha a oferecer para eles, e sucumbiam. Se nem neles eu podia colocar minhas esperanças, em quem pretensamente podia olhar além das aparências, de onde surgiram essas multidões de insatisfeitos? Ainda não sei. Mas, será que realmente só algumas pessoas, a dizer, os intelectuais, sabiam do que realmente estava acontecendo? Que o mercado havia se tornado tão objetivo que suas leis regiam todos e eles a seguiam de forma a não perceber que ele havia sido uma construção deles e não de uma mão invisível? Que era só uma questão de consciência de classe, como dizia um deles, depois ecoado por outros, para que as coisas mudassem? Não creio. Principalmente porque a crise se estendia por todo século vinte e vinte e um, se intensificava a cada década, a cada mês. Bastava andar um pouco por qualquer rua de São Paulo, para notar que se você notasse de fato o que estava acontecendo ao seu redor e se sentisse parte daquilo, seria impossível manter sua sanidade ou humanidade. Dessa forma, a inconsciência foi dando lugar ao que havia, e que era muito mais duro de se combater, uma consciência velada, ou cinismo de classe. A crise colocava tudo como um mostruário, ou um “monstruário” na sua cara e dizer que não podia ver – ou, a desculpa mais esfarrapada, que não podia fazer muito ou nada a respeito já que era responsabilidade do Estado e o Estado dizendo que as organizações não-governamentais estavam aí para isso – tornava tudo um grande empurrra-empurra, nenhuma atitude sendo tomada. E uma parte do país, uma porcentagem ínfima ficando cada vez mais bilionária e o resto ficando em uma situação calamitosa, mas sempre sendo encorajada a consumir, a possuir e a desejar chegar aos pontos mais altos, sem perceberem que para chegar lá, eles teriam que usar seus semelhantes como escada.
Deixo de lado estes pensamentos e ligo a televisão. Puxa, a televisão! Mais como um reflexo de uma prática de antigamente do que por qualquer outro motivo. Quero que esta solidão seja aliviada. Acho engraçado que ainda tenhamos eletricidade. Não parece verossimilhante com o caos. Exceto por algumas regiões da cidade cujos postes sofreram com a passagem da turba, as linhas foram poupadas. Muito curioso como uma massa de pessoas agindo de forma tão irracional e furiosa, destruindo compressões legais, civilizatórias, conseguiu se manter tão consciente de que não poderia destruir os postes de iluminação. Será mesmo possível existir uma civilização não-repressiva, como desejava Marcuse? Pensemos: as estações de fornecimento de energia, primeiro abandonadas pelos funcionários, devem ter sido repovoadas com novas pessoas, que buscavam um lugar para se proteger da fúria dos acontecimentos, e que depois, acabaram ficando para aprender como as máquinas funcionavam. A maioria dos funcionários deve ter feito o que o rapaz da rua estava fazendo, e muitos já sabiam lidar com o maquinário. Ou talvez eles estejam usando máquinas para controlar tudo. E na televisão, entre momentos de estática, temos uma transmissão. Ela acontece em várias línguas e acredito que só tenhamos acesso por enquanto a uma retransmissão. Elas se parecem tanto todo dia, mas o conteúdo é diferente. É uma explicação do que aconteceu e um apelo para as pessoas que ainda não se juntaram à nova humanidade, como eles se auto-intitulam, que procurem as comissões da sua comunidade. É muito curioso. Eles derrubam o governo e colocam estas comissões provisórias (segundo eles) – que com certeza vão virar permanentes –, para lidar com os aspectos sociais da revolução. Bom, aqui estou eu sendo pessimista como de costume. Devo conceder a eles o beneficio da dúvida, afinal, “por mais totalizante que fosse a revolta, ela jamais poderia ser unânime. E mais, o vir-a-ser provavelmente será formado por algo bastante dinâmico e auto-crítico. Ao invés de se auto-naturalizar, o questionamento vai ser uma atitude sine qua non, o permanente vai desaparecer.” Quem será que disse isso? Será que fui eu mesmo? Provavelmente alguns dos alemães sonhadores que lia. Em linguajar popular eu diria: os insatisfeitos sempre existirão e isso não deve ser um defeito. Mas o que pareço ver é uma fase de transição e nela, comunicação, força de trabalho, alimentação, segurança e uma infinidade de outras comissões vão surgindo. Parece que as pessoas responsáveis por isso pensaram em tudo. Supondo que existam certas pessoas que encabeçaram as ações. Onde estão os ícones? Não consigo enxergá-los daqui. Já sei! Antigos movimentos sociais, como o movimento dos sem-terra tomam conta do abastecimento. Outra comissão, de segurança, deve cuidar das tentativas de contra-revolução, pois os gemidos do sistema que agoniza ainda existem. Seria uma nova SS? Um novo exército vermelho? Uma forma fálica de auto-afirmação? Não sei. Mas sentia no ar uma resistência das pessoas, diria até uma vergonha, a se ligar a certos partidos políticos. Eles tentam não tornar a revolução política, não no sentido estrito da palavra. Uma semi-anarquia, se é que tal coisa existe. Se não existia, agora existe, e se o sistema de patentes conceituais continuasse, eu a teorizaria por dias a fio. Mas prefiro concluir este assunto de um modo bem fabular: parece que os homens cansados de seu sistema de governo decidem escolher um modo de governo entre os animais. As abelhas e formigas com seus reis e rainhas são recusadas, viva a revolução francesa! Os elefantes, matriarcais, também. Viva o machismo! Parece que agora os homens decidiram ser patos: os patos não decidem por força ou votação quem vai ser o líder do bando, quando migram, um deles simplesmente toma a diante e vai e quando se cansa, ele deixa a vaga livre que é tomada por um outro membro e assim por diante. Se algum deles não quiser tomar a liderança, ele pode, e se algum quiser ficar lá indefinidamente, ele também pode até o ponto em que seu corpo agüentar.
Mudo de canal e me recordo que não há mais canais. Só estática. Será que isso é o fim do nosso poder de escolha? Esse era um carro-chefe do capitalismo. Ou será que agora poderemos prestar atenção às escolhas realmente relevantes? “Não há liberdade” não é mesmo, meu caro Adorno? “enquanto tudo tem um preço e, na sociedade reificada, as coisas isentas do mecanismo do preço só existem como rudimentos lastimáveis.” Não mais escolhendo as marcas ou pensando que temos liberdade de escolher a vida que queremos, já que agíamos dentro de determinações de classe, como agiremos numa sociedade que aboliu as classe? Quer dizer, onde todos são ricos? Ou seriam pobres? Não sei. Isso exige observação mais próxima.
Pensando bem, por que não? Sim, todos agora são ricos. Mas não no sentido antigo de riqueza. Todos se fazem possuir muito dinheiro. Não bem dinheiro. Acho que essa terminologia seria inadequada para descrever o que acontecia pouco antes da revolução. Se vocês se recordam, o dinheiro vinha cada vez se tornando mais e mais abstrato. Ele nem tinha mais presença material muitas vezes. Ele havia se tornado um número nas máquinas, nos cartões magnéticos, usados universalmente. Mas para alimentar as máquinas, nós precisamos de homens, e eis que os homens passaram a alimentar os números que quisessem e assim, o dinheiro de verdade passou a ter tanto valor quanto o dinheiro do Banco Imobiliário[1]. Sua abstração atingiu um nível tão grande que ele parecia apenas um personagem dos contos de fadas. Logo as pessoas não vão querer mais brincar de trocar números nas suas máquinas e cartões, e vão procurar um novo jogo. E vão esquecer o que foi dinheiro. Mas há certas regras como, por exemplo, não se pode brincar de comprar terras e imóveis. Toda a lei de possessão de terras foi por água abaixo como uma das primeiras medidas do estopim revolucionário. Só é lícito agora que as pessoas possuam aquilo que está ao alcance do seu braço, ou seja, uma área de no máximo 2 m2. E seria muito triste que uma pessoa resolvesse tomar só para ela aquele espaço para sempre, porque ela só poderia fazê-lo se continuasse ali naquele espaço, e abrisse mão de todo o resto. Vivo e em movimento, estão agora não só as pessoas, mas o espaço. E alterando a relação entre espaço, muito provavelmente alteramos a velocidade das coisas. Em teoria, temos todo tempo do mundo. Sem mais prazos, datas de vencimento. Seria esta a tal era de civilização tardia onde as pessoas param de produzir e passam a usufruir daquilo que a civilização alcançou ao invés de abrir mão dela? Não sei também, isso só o futuro dirá. Por falar nele, as pessoas não se importam mais tanto com o futuro. Percebi isso, entre outras coisas, com a crise da religião, que inclusive me parece ter sido outro fator determinante para instigar as pessoas a se rebelarem.
O século vinte foi um período extremamente laico e uma época onde a religião sofreu muitos altos e baixos. Principalmente nas épocas de crise, a religião se fortalecia, pois oferecia uma possível salvação no mundo do além. Se você não podia ter sua casa própria, poderia ter um lote do céu, para compensar a vida dura aqui na Terra, havia uma vida linda e pintada de nuvens do outro lado. Para os que estavam no poder, estava tudo bem, porque de certa forma, esse deslocamento desta vida completa para o além, servia como anestesia para uma possível ação neste mundo. Mas os ensinamentos das religiões também lidavam com fatores extremamente incômodos ao sistema. Ajudar o próximo, ser comedido, ia de encontro ao individualismo e à obsessão pródiga de consumo infinito. Entretanto, o que fez com que as pessoas abandonassem tão rapidamente as igrejas foi perceber que elas haviam se tornado uma mercadoria. E que como qualquer mercadoria, ela se tornava obsoleta e devia ser trocada pela versão mais atual. Como as igrejas estavam se tornando shopping centers, com lojas e produtos, e os líderes religiosos enriquecendo, de forma tão cínica, essa mercantilização da salvação foi desautorizando a religião. Era só mais um produto entre vários. Mas os espetáculos cativavam as massas de pessoas que pouco a pouco iam crescendo e se projetando para o futuro, para o além e nunca para o aqui e agora. Acredito que a irracionalidade desta projeção foi se tornando cada vez mais visível, até o ponto em que as igrejas não mais davam conforto, e sim, faziam as pessoas questionarem onde estavam. E esse questionamento, que era tido como um efeito colateral, acabou por dar impulso àqueles que desejavam uma mudança no mundo de agora. Hoje, acredito que as pessoas ainda expressem suas crenças e realizem rituais transcendentes, mas deve ser, de certa forma, uma coisa mais pessoal, sem lugares demarcados, e de forma que não se projete uma segurança e realização apenas para o futuro, mas que a tal felicidade comece desde já. Um novo panteísmo natural.
Ah e a arte! Gostaria de voltar meu pensamento sobre ela, já que era a partir dela que obtinha o meu ganha-pão. Não era artista. Muito pelo contrário, só me aproveitava deles para entender melhor o mundo, e assim, ensinar literatura. Como não podia deixar de ser, num mundo que vai se mudando lá fora, a arte também vai acompanhando. Parece-me que hoje, depois que a revolução já passou e o mundo se reconfigura em outra ordem, em outras categorias, ainda desconhecidas para mim, as da arte devem estar se desdobrando em algo interessante. Será que finalmente a arte atingiu um status coletivo de fato? Da mesma forma que as pessoas buscam aprimorar seus conhecimentos, trocando com quem sabe de determinado assunto, a arte agora pertence a todos. Muitos escrevem, mas apenas como forma de expressão pessoal, e compartilham estas realizações artísticas com aqueles ao redor que quiserem fruir, ao invés de consumir. Não existe reprodução no sentido em que o capitalismo havia instituído. Caso você gostasse do que havia visto ou lido, poderia buscar realizar algo parecido e ter a sua versão de arte. Ler, escrever, pintar, fotografar, cantar, dançar, filmar ou atuar, dependendo do que melhor apetecesse a cada um, passou a fazer parte de todos, como respirar ou andar. Os meios de produção se encontram espalhados e agora, disponíveis aos que buscam aprender com os que sabem mais.
Falando em andar, creio que já posso tirar os móveis que impedem a entrada e a saída desta ilha que criei. Mas antes preciso me sentar. Minha respiração se faz pesada, difícil, mas deve ser a emoção. O tempo passou e eu não vi. As chamas já não existem e eu percebo que meu depoimento foi juntando pedaços do que era com vislumbres do que é. Vou derrubar as trincheiras e descer ao mundo de novo. Minha visão se turva, mas devem ser as lágrimas da liberdade. De onde tento olhar, de minha sacada, o espetáculo já não se configura mais como um espetáculo. A música vai se tornando baixinha, até ser apenas um sussurro, mas deve ser por causa do meu afastamento, descendo, mais e mais rápido... Das pilhas e pilhas de livros, de obras de arte que adornam meu apartamento, os meus muitos DVDs. Meu primeiro passo é deixar de ter para ser. Olho para estas linhas. Minha mão fica pesada e eu me esforço para terminá-las. Prefiro mergulhar na história e fazer parte dela, não mais como espectador, e sim, como alguém que morre como é e busca renascer para esse admirável mundo novo de possibilidades que se estende até onde a História permitir, afinal, mesmo sendo utópico, não devo crer no “viveram felizes para sempre”. Poderei, finalmente, caçar de manhã, pescar à tarde, produzir chips antes do sol se pôr, cuidar do gado à noitinha, fazer crítica após o jantar, simplesmente por eu ter uma mente, sem nunca por isso, me tornar um caçador, pescador, técnico de silício, pastor ou crítico? Eu vou ser comple...

As criaturas se aproximavam timidamente do que haviam restado daqueles tempos sombrios. Como arqueólogos, olhando para um passado remoto, tudo era surpresa e descoberta. Figuras estranhas, excesso de plástico e de concreto. Muito cuidado deveria ser tomado. A ação de decadência do tempo já havia maltratado deveras aquelas estruturas gigantes. Mas muitas coisas podem ser aproveitadas, frutos da era do desperdício. Olhares curiosos e confusos. Uma das criaturas olha para aquela que a acompanhava. Nenhum som. Há algo ali, diz o olhar. Um aceno confirmativo. Cuidado reverente. Um amontoado de tecidos extremamente desgastado. Talvez seda, ou linho. Envolto nestes trapos, uma pilha de ossos, ossos humanos, ao lado de um amontoado de papéis amarelecidos...
[1] Monopoly

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

seria a felicidade possível?

Eu sou música
Eu sou dança
Sou a luz
A festa
Risada
Sou sorvete de chocolate
Um passeio no campo
Um duende
Uma gota de orvalho
Sou um aperto de mão
Um beijo roubado
Carinho.
Sou uma vela perfuma
Uma raiz profunda
Sou a lua cheia
Sou o dia
Sou o barulho das ondas
Chuva na seca
Arco-íris na tempestade
Sou a luz que ilumina cada caminho difícil
Sou escuridão de descanso
Me sinto vida
Então abro as asas e o coração