terça-feira, 3 de novembro de 2020

Desenlace


Me vejo seminu sentindo uma brisa 

Leve e o tapete acarinha meus pés.

Tenho vergonha e penso

Apenas eu vou me desnudar?

Parece injusto, mas aquiesço.


No momento que a primeira 

corda encontra a minha pele

Movimentos se reduzem.

Eu ainda não faço ideia de para onde 

ela vai correr

E como vai me abraçar 

Feito jararaca.


Sinto o calor do seu corpo e o 

Olhar concentrado

Fazendo artes na sua cabeça

E deixando as mãos traduzirem

No idioma das cordas.


Olho tudo acuado,

Ao mesmo tempo em que 

Sinto meus músculos 

Destensionarem

Calo e confio.


As cordas dançam mais

Fazendo piruetas e correndo

Elas tocam meu corpo,

Cada vez mais enroladas,

Mais íntimas,

Pedindo licença do seu jeito 

Silente. Estudando os ângulos

Contrapondo as forças

Desafiando a gravidade.


Vou movendo o que ainda posso,

No ritmo hipnótico da música.

Me perco em admirações 

dos pequenos tufos na sua axila

Imagino os pubianos que só vi de longe


Estou suspenso no ar,

Minhas mãos doem,

Mas não sei se porque querem te tocar

Ou porque o sangue lhes falta.

Metade de mim vai jazer no chão.


Agora, tendo já suportado meu peso, as 

cordas se apertam

Libertando gemidos que me confundem

Dor e prazer

Sinto seu pé contra mim e ao

Meu favor.


Ao final, a música fica distante

As cordas vão se acumulando,

Flácidas em meu corpo flácido

Um abraço sela nossa troca

Queria que ele durasse mais.


Ainda sinto as amarras

Ainda sinto o toque

Ainda sinto um tesão

Podia ter tesão?

Que explode sem que você veja

Naquela mesma noite.


Algo ficou amarrado e suspenso

Na minha mente. Parece que é 

uma pergunta:

Quando será

A próxima vez?


quinta-feira, 2 de julho de 2020

Perto do coração (selvagem?)

A leitura de Clarice se colocou como uma espécie de armadilha para ele. Por mais que lesse palavras escritas há tanto tempo, entrava na vida de Joana na tentativa de esquecer a sua própria. A forma como o cotidiano ganhava novos significados trazia pensamentos e presentificavam o fiasco e o desespero. Porque agora ele entendia.

Ele havia sido forçado a entender. Não parecia mais haver mistérios ou acasos, não havia mais desculpas nem retorno dos seus atos. Ele precisava revisitar o passado e daí entenderia o presente. Ele precisava dar sentido ao que havia sido e compreender cada passo, para então desvendar a origem da sua vergonha.

Mas que vergonha havia de ser esta? A vergonha de desnudar-se a luz do dia. Ele arrancava lentamente sua pele e mostrava contente suas entranhas, ao contar de aventuras na escada, da facilidade como possuía o próximo, deixando escorrer verdades pela bochecha e pelo chão. Cospe, não engole. E brota da terra pervertido e libidinoso. Mas será que o outro, estudante da lei e da ordem, poderia transcender sua natureza e aceitar a imoralidade alheia sem processos, julgamentos e sanções?

Mesmo sabendo dos riscos, porque dentro do isolamento o que se busca é felicidade e conexão, poderiam aquelas verdades atiradas como balas, assustar a presa, minar as relações, um pisar de galhos do caçador desleixado? Seria o fim do acolhimento respeitoso, uma sabotagem da calmaria recém-encontrada, enquanto lá fora é pura tempestade?

Mas é assim que se cria intimidade: imediata, artificial, avanlanchica. Porque era necessário saber se o outro aceitaria as trevas alheias, sem tremer, e logo. Porque a intimidade é uma ampulheta, desce o fio de grão em grão. Dá tempo de decantar. Mas o tempo não seria relativo, ainda mais esses tempos de cólera?

Os dois encontros voltavam como um filme que se repetia ao terminar. Seria o novo método de autotortura? Na primeira vez, histórias em torrente como um rio de corredeiras, mas ao sair, seco, a sensação de não saber nada. Uma boca, dois ouvidos, lembra? Como completar o quebra-cabeça, se você dá peças e não ganha nenhuma em troca? Como entender a figura geral sem o silêncio e a escuta?

Mas a urgência, a vontade de ser compreendido, em último caso, amado, transformam uma língua em duas, e mesmo tremendo, décadas de memórias brotam tal qual nascente de rio, as melhores, mais sedutoras se acotovelando para sair e vão vazando como um balão que murcha e voa descontrolado.

E a experiência ensina. A culpa renegocia os termos.   Na segunda conversa, menos histórias e mais perguntas. Quem era aquele estranho tão fascinante, que o havia feito perder a timidez, os pensamentos sabotadores? Por que alguém tão diferente e aparentemente interessante iria conhecer alguém tão comum quanto ele? Não seria mais fácil obedecer ao apartamento social, o cotidiano e o novo? Cada um no seu andar, no seu número, no seu quadrado. Vidas já ocupadas por amigos, demandas prévias. Quem quer mais um? E por que mais um? Qual o motivo ulterior, a vantagem estratégica de ampliar o círculo nessa direção específica. Não há sempre uma motivação que gera os atos e neutraliza a apatia da lei?

Se é mais fácil ser superficial, para que cavar, desvelar, descobrir? Por que essa vontade de intimidade se torna tão imperiosa e pungente? E causa dor na separação, medo no reviver da situação e ansiedade pela próxima aproximação. Na vez seguinte, tudo será diferente. Porque ele será diferente, ainda impaciente e urgente, sondante e testador de novos limites. Ele será punido por cruzar certas linhas. Vai perder a linha? Ou será recompensado com jorros de verdades ocultas, não apenas gotas que batem em uma superfície educada e evasiva?

A grande vontade que ele tem é a de talvez quebrar as regras sociais preestabelecidas, alargando o pescoço da ampulheta, permitindo blocos maciços atravessarem, do tamanho de nós na garganta.É uma grande receita sendo preparada de como transformar pequenas conversas do elevador, bons dias, tardes e noite em verdades ocultas, primitivas, recônditas. Mas parece, que como esse texto, ao procurar respostas, ele encontra mais e mais perguntas. Será que deve escrever para o outro? Quais são seus interesses em comum? Ler em galope e não em trote. Para chegar mais rápido no destino e se reencontrar. Levando no bolso um segredo, o grande segredo indizível. Só aparece uma pequena corda, ao qual o segredo, lindo e monstruoso, está amarrado, e depende do outro a disposição e vontade de puxar e revelar.

O que se deve fazer agora é contar com a paciência proverbial e aguardar, observar atentamente como serão os próximos movimentos: centrífugos ou centrípetos? Sem sentido? Como sempre, o tenebroso, o ominoso, que espreita na virada de qualquer esquina, dirá.