terça-feira, 22 de junho de 2021

Pequena resenha emocional de uma jornada de leitura: Gramática Pedagógica do Português Brasileiro

Ano passado foi mesmo um ano atípico. Muita coisa ruim aconteceu, ainda está acontecendo. Mas algumas coisas boas aconteceram também. Li um livro e queria contar como foi a experiência. Na verdade, ano passado li cinquenta livros. Contei porque tenho um aplicativo, chama-se Goodreads, no qual vou lançando as leituras atuais e as que desejo ler no futuro. Vejo o que os amigos estão lendo, é bem legal. Um desses livros, na verdade, não consta nos cinquenta porque só terminei ele agora em 2021. Então vai entrar na contagem deste ano. É sobre ele que logo vou escrever.

Antes, vale lembrar que pode parecer algo meio lugar-comum que eu tenha lido tantos livros, que esse seja um número até razoável para alguém que trabalha com a literatura e gosta tanto ler. Não é. A vida social ou o trabalho tendem a reduzir bastante meu tempo de leitura livre e minha atenção, então nunca havia chegado nem a trinta livros por ano. Eis que no ano passado a quarentena se ofereceu como uma oportunidade para que eu lesse mais, como forma de entender o que estava acontecendo à minha volta, como forma de respirar um pouco o ar de uma realidade outra, que não essa em que estávamos vivendo. Li de tudo: (auto)biografias, livros teóricos, romances, contos, poesia. Um desses livros foi a Gramática Pedagógica do Português Brasileiro, do Marcos Bagno.

Cheguei a esse livro por uma série de coincidências. Trabalhando no curso de Linguagens, me foi atribuída uma disciplina chamada Análise linguística do português. Conversando com uma amiga muito fofa, que é da área da língua portuguesa, colecionadora de gramáticas, a Renata, decidi que iria fazer com as/os estudantes um estudo comparativo de algumas gramáticas da língua portuguesa. Em vez de fazer eles decorarem regras, por que não pensarmos em critérios para encontrar melhores materiais de consulta e pesquisa, aqueles que melhor refletissem a prática de cada um(a)? Comecei a pesquisar na internet e encontrei a introdução dessa gramática do Bagno. Li e gostei muito do que ele propunha ser seu objetivo e a forma como ele havia organizado seu estudo. Fui pesquisar e um golpe de sorte: o preço da gramática era R$ 190,00, mas estava numa promoção na Amazon por R$88,00. Comprei sem nem pensar duas vezes. Tinha adquirido, então, minha primeira gramática de língua materna completa e não escolar. 

Quando ela chegou em casa, nova surpresa. Era um livro com mais de mil páginas, capa dura, cheio de fotos, com várias partes e capítulos (cinco partes e vinte e dois capítulos, para ser mais exato). Comecei a ler os primeiros capítulos, movido por uma curiosidade. Eram capítulos mais teóricos, porém escritos de uma maneira tão vibrante, tão sincera e direta, que a leitura foi fluindo. Muitas das coisas que ele trazia eram coisas que eu já havia estudado sobre a linguística. Outras eu nem me lembrava e muitas eram novidades. Não sabia o quanto eu não sabia sobre a nossa língua.

Havia, além da teoria, muitos exemplos, com tabelas, quadros. Em muitos momentos comparações com outras línguas apareciam. Uma das seções iniciais da gramática era sobre a história da língua portuguesa do Brasil. Era um tipo de coisa que eu não tinha estudado na faculdade, não pelo menos de forma tão contextualizada e didática. E não apenas nessas partes, mas em todo percurso da gramática, exemplos da língua em uso em séculos anteriores mostravam como aquilo que alguns consideram erros são fenômenos que ocorrem há séculos. Em vários trechos, ao falar sobre as transformações da língua, o autor fazia considerações sobre como a língua pode vir a se desenvolver: passado, presente e futuro da língua, num jogo dinâmico, que deixava seu texto mais instigante, especulativo.

Apesar de ser um livro técnico, com um discurso bem carregado no que concerne aos conceitos da linguística, o que dava a ele consistência científica, ele lembrava em algumas partes um romance, uma metanarrativa da língua. Havia surpresas interessantes, como um dos exemplos de uso da língua em que o autor colocou: “Sérgio apresentou o namorado para a família.” Ele tinha indicado que a língua era uma instância política, mas o exemplo falava sobre verbos, de uma maneira a desnaturalizar uma heteronormatividade até mesmo inconsciente (normalmente não) presente em outros materiais didáticos e científicos. Nada tão surpreendente, vindo de quem veio, mas dizem que o diabo (que era um anjo, inclusive) mora nos detalhes.

A parte mais longa do livro é mais técnica e um pouco mais árida para se ler de forma contínua, mas segui com minhas leituras sem pular uma página. Fica menos narrativa e mais episódica. É quando Bagno fala sobre as classes de palavras. Mas não por meio de uma abordagem morfológica apenas: as palavras são dinâmicas e não se prendem a apenas uma classe gramatical. Dentro de cada capítulo ele fazia considerações sintáticas, semânticas e pragmáticas. Uma abordagem discursiva profunda. E ele não segue a tradição de dividir as palavras em 10 classes gramaticais: comenta sobre isso e aponta os limites e deficiências desse tipo de epistemologia. Ele mostra o que tem sido pesquisado e como essa divisão, que remonta aos gramáticos gregos, não se aplica mais hoje em dia.

Eu me divertia, refletia e aprendia. E algumas pessoas ao meu redor ficaram meio céticas de que eu leria aquele grande livro, que eu não aguentava nem segurar direito por muito tempo. Mas lia deitado, com ele apoiado no peito. Ouvia a voz de Bagno me contando os fatos da língua, as fofocas dos bastidores da linguística e a forma como nossa língua é poderosa, variada, rica. Me apropriava mais dela ao escrever, ao ler, lembrava de observar os fenômenos, de entender a poética e as relações estabelecidas. Os capítulos finais se voltam ao que (não) ensinar na escola, e comenta um pouco sobre alguns aspectos sociais da língua como a hipercorreção, o erro, algo que é bem caro ao autor em outras de suas obras. 

Como num relacionamento amoroso, fui conhecendo melhor nossa língua e me apaixonando por ela e pela experiência que eu estava tendo com a leitura. Mesmo com muitas demandas, lia algumas páginas, poucas que fossem, de noite, antes de dormir. Demorei muitos meses para encerrar, mas o livro foi me acompanhando também nas coisas que foram mudando na minha vida. Ele mudou de estado comigo, teve que ficar encaixotado, mas foi direto para a mesa de cabeceira. Em outra disciplina que dei no semestre seguinte àquele quando comecei a gramática, sugeri aos/às estudantes: comprem se puderem. É cara para um estudante, mas vale cada página. Fiquem de olho para promoções, feiras de livros, etc. Espero que quem seguiu meu conselho tenha uma leitura integral (o que acho meio improvável, pelo volume dele, e da leve loucura que foi) ou de fragmentos desse livro delicioso. Qualquer dia desses devo escrever para o autor, agradecendo pela oportunidade e desejando mais e mais obras como essa.


segunda-feira, 8 de março de 2021

As indelícias de não dizer não

Me lembro, como se fosse ontem, que tudo isso aconteceu. Era um sábado. Daqueles sábados em que faz um calorzinho gostoso, que convida a gente a passear por aí, que torna ficar em casa algo extremamente desagradável. Mas era a fase final do mestrado. Tanta coisa para escrever. Por que eu deixo tudo sempre para a última hora? Bom, se tem que fazer, tem que fazer. A carreira acadêmica me anima bastante, preciso terminar o mestrado bem para conseguir entrar no doutorado. Uma coisa somente segue a outra naturalmente no caso de eu realizar um bom trabalho. Imagina qual orientador ia querer continuar comigo, por um casamento de mais longos quatro anos, se o mestrado parecer uma canoa furada? E que tipo de incentivo se pode ter para se manter em casa durante um dia quente e lindo do que outra pessoa que precisa ficar em casa também, realizando a escrita de seu trabalho?

Combinei, então, com minha amiga Patrícia, que iríamos fazer uma imersão nos estudos. Enquanto eu pesquisava e escrevia sobre comunidades intencionais na América Latina, ela pesquisava e escrevia o doutorado dela sobre problemas no sistema de saúde nacional. Quando a gente cansasse do nosso trabalho, trocaríamos. Ela lendo o meu e eu lendo o dela, veríamos se as ideias estavam bem ajambradas, poderíamos até sugerir continuidades. E descansaríamos das nossas próprias escritas. Um plano primoroso, um ganha-ganha. E assim fizemos, pelo decorrer de horas e horas daquele sábado de verão. Capítulos iam ganhando forma, em páginas e mais páginas que se anunciavam e brotavam na nossa cabeça.

Já no fim da tarde, a fome bateu. Confabulamos. Não seria interessante ir para a cozinha preparar alguma coisa. Isso levaria tempo e a despensa estava vazia. Decidimos caminhar para comer algo, mas onde? Naquela época eu ainda morava num pequeno apartamento que dava para o elevado da Nove de Julho, ali perto da praça 14 bis. Ela não tem nada de uma típica praça, arborizada, com banquinhos, talvez até espaço pra dominó, damas. O elevado é um monstro de concreto com um ponto de ônibus, e na parte de baixo é mais concreto e rua. São carros por cima e por baixo, barulho e cheiro ruim. Definitivamente não é um dos meus lugares favoritos, mas o aluguel é muito em conta. Não tem muito comércio aberto por ali aos finais de semana. A escolha ideal seria comer alguma coisa na praça de alimentação do shopping Frei Caneca. Ou Gay Boneca, como foi carinhosamente apelidado pelos frequentadores, em sua maioria jovens gays que moram nos bairros do entorno. É um dos vários lugares da cidade em que os casais homoafetivos andam de mão dadas sem muita preocupação. Como a Patrícia tinha algumas restrições com o consumo de carne, ela poderia comer algo vegetariano e eu comeria qualquer coisa. Havia tantas opções na praça, era só escolher o que a fome pedisse. Mas não. Por algum motivo (inexplicável, em retrospecto, devo admitir), escolhemos comer no Habib’s da Augusta. Curioso que hoje, ao me lembrar de tudo, já fico cansado apenas de pensar que teríamos que subir a escadaria de acesso da Nove de Julho à rua Frei Caneca, subir a rua todinha até a Paulista, uma ladeirinha de dois quilômetros, mais ou menos, contornar o Conjunto Nacional e chegar ao nosso destino. Mas acho que o aborrecimento de ficar enfurnado nos deu uma motivação extra de caminhar e conversar. Afinal, tem coisa melhor que a procrastinação para que a gente faça pequenas loucuras no dia a dia, justificadas e chanceladas? Nos vestimos, porque o dia estava tão quente que a gente estava trabalhando praticamente sem roupa. A Pat colocou um vestidinho de chita, curto, mas bastante verão. Não sei se era bem chita, mas era aquele tecido leve, que não amassa. E era de bolinhas. Eu coloquei uma camiseta de algodão e uma bermuda, daquelas menores que os jogadores usam para praticar esportes. Gosto de ver minha coxa aparecendo, acho uma parte bonita do meu corpo. Quem olhasse a gente ia pensar que havíamos acabado de sair da praia. Chinelos, cabelos bagunçados. Mas quem precisava de mais do que isso? Começamos nossa jornada por volta de umas 17h. O sol estava baixo, caminhando para o poente. A gente não ia conseguir ver o sol sumir por causa dos prédios. Talvez alcançássemos a Paulista a tempo de vislumbrar o adeus do astro-rei por entre as silhuetas dos prédios, mas vocês já devem estar imaginando que, como Drummond bem nos avisou, haveria uma pedra no meio do caminho.

Passamos pelo shopping, seguimos pela Frei Caneca e, na esquina com a Peixoto, há um bar, carinhosamente chamado de Bar da Loca. Não que a dona fosse maluca. Ele tinha esse nome porque era colado a uma das casas noturnas lgbt mais tradicionais de São Paulo. Se o bar tinha outro nome, acho que ninguém sabia. Era o estigma da (boa?) vizinhança. Muitas pessoas aproveitavam o gostoso do dia para tomar cerveja, e eis que uma mesa na rua tinha umas 8 garotas. Elas chamaram a Pat e ela as reconheceu. Ois e ois, apresentações, puxa uma cadeira e senta aí. A gente se olhou, conversamos sem trocar palavras. A Tina (apelido fofinho da nossa amiga da onça, procrastinação) deu uma sambadinha, uma risadinha demoníaca, e isso serviu para que a gente pedisse duas cadeiras e ficássemos uns minutinhos. A fome batia, mas a gente não ia pedir porções no bar. Então a fome era inflacionada, não tínhamos almoçado, tão focados estávamos. Seres gregários, porque não bater um papo e compartilhar com as amigues nossos dramas tão típicos da pós-graduação? Nos espalhamos e começamos a conversar. Risadas, mais dois copos, por favor. Só uns golinhos de cerveja. Junto com as meninas, havia um rapaz. Ele era moreno, cabelo curto e era bem baixinho, devia ter 1,65, no máximo. Perguntou meu nome, onde eu morava, aquelas informações básicas todas. Ele era bastante irreverente, contava umas histórias que nos faziam rir. Uma certa hora, levaram uma cadeira da mesa e ele, que se movia para lá e para cá, ficou sem ter onde sentar. Perguntou se poderia sentar no meu colo. Não é todo dia que estranhos pedem para sentar no nosso colo. Deixei, porém de uma maneira respeitosa, quase que sobre o joelho. Rimos mais. As meninas alegres, poderíamos passar horas ali, bebendo e rindo. Mas olhei para a Pat. “Amiga, está na hora de ir embora.” Pegamos uns trocados, para contribuir nas cervejas que tínhamos tomado e começamos a nos despedir. O rapaz, Bruno era o nome dele, ficou chateado: “Vocês já vão embora?” Havia algo incomum na forma dele interagir com a gente. 

“Sim, temos que comer, voltar para casa e seguir nossos estudos.”

“Puxa, mas eu gostei tanto de vocês. Posso ir comer com vocês?” Ele tinha um jeito bastante sinestésico de falar, ele apertava o braço, apertava o ombro, passava a mão. Não era meu tipo preferido de atitude, mas não seria o chato que pede para não ser tocado.

Daí, não sei se foi a minha gentileza natural, o calor, a fome, a cerveja no estômago vazio, o charme quase infantil dele, todos juntos ou nenhum deles que nos fizeram dizer que tudo bem. Sabíamos sobre ele o tanto que você, pessoa leitora, mas se era amigo das meninas, estava tudo bem. Deveria ser alguém confiável. E ele não queria ir para casa. Seria apenas a janta e depois cada um para seu lado. E éramos dois e ele apenas um.

“Para onde vocês vão?”

“Vamos no Habib’s da Augusta.”

“Ah, mas o Habib’s é tão sem graça. Posso levar vocês em um restaurante que eu gosto?”

Nos olhamos. Uma das motivações de escolha daquele restaurante era o preço acessível dos itens no cardápio. A gente queria algo prático, rápido e barato. Pós-graduandos não podem ficar esbanjando por aí, não é? Sentia que em meu olhar dizia, amiga, nega, por favor. Isso vai nos atrasar. Mas a boca permanecia cerrada. O olhar dela respondia da mesma maneira, não quero sair do plano. Sair mais do plano. E as nossas vinte páginas de hoje? Mas a boca dela não se movia. Uma completa incompetência telepática. Mas como diz o ditado, é no fracasso alheio que jaz o sucesso dos loucos.

“Olha, não sei.” A dúvida começou a se instalar. Será que a gentileza iria se converter em arrependimento?

***

Ele pediu que a gente o acompanhasse até o shopping para pegar o carro dele e de lá iríamos para o tal restaurante. Perguntamos se era perto porque queríamos poder voltar logo para casa para seguir com os estudos. Horas já haviam se passado e a gente não tinha nem comido ainda! Fomos conversando, mais ele com a Patrícia, que falavam dos mais diversos assuntos e não paravam de falar. Gosto de observar pessoas engajadas em conversas das mais diversas, aprendo bastante ouvindo e me divirto, mesmo sem falar muito.

Quando chegamos ao estacionamento, ele apontou para um carro. Não sou muito versado em marcas e modelos de carros. Na verdade, escolhi ser bastante desconhecedor. Vejo carros como simples máquinas de levar a gente de um lado para o outro, apesar de saber bem sobre a mágica que eles realizam enquanto símbolos de status. Percebi apenas que o carro dele era um carro de grande porte, uma espécie de jipe, e ao entrar, me admirei que os bancos dianteiros e traseiros eram de couro. Achei uma coisa brega e desconfortável, mas comecei a reparar que aquilo era um sinal de que aquele menino era alguém fora do ordinário. Porém, nada na forma como ele estava vestido fazia a gente começar a suspeitar disso. Uma camisa polo, calças jeans e tênis. Além disso, pode ser que aquele carro fosse do pai dele, qualquer coisa do tipo.

“Quero levar vocês no meu restaurante favorito.”

“Como se chama?”

“Spot. Fica na Paulista.”

Olhei para a  Pat e ela, como eu, também parecia desconhecer o tal restaurante. Ela tinha a desculpa de ser de São Bernardo, e não frequentar tanto São Paulo, mas eu, que sempre caminhava pela Paulista, talvez não tivesse tido a atenção chamada para tal lugar. Quantas vezes não havia descoberto que portas despretensiosas se convertiam em lugares bastante interessantes? Para os iniciados, os conhecedores, claro. É algo típico da região. Era necessário sempre algume amigue me convidar e lá estava eu descobrindo o que havia nos recônditos daquele prédio ou casa.

Quando chegamos, ao descer do carro, um choque. O valet do restaurante o cumprimentou e vimos que se tratava de um restaurante super chique.

Havia um gramado com uma fonte ao centro, e em volta vários bancos de pedra. Pessoas bastante animadas, e descoladas, espalhadas em mesas do lado de fora. A primeira coisa que fizemos, Pat e eu, foi nos olharmos de cima a baixo. Apesar de ainda estar bem calor, nossas roupas improvisadas não pareciam fazer jus ao lugar em que estávamos. Foi uma explosão de autoconsciência e de sensação de peixe fora d’água. Já descemos do carro nos desculpando.

“Nossa, mas a gente não sabia que era um restaurante tão chique.”

“Eita, e nossas roupas? Não vão deixar a gente entrar.”

“Não se preocupem,” disse Bruno. “Eu conheço o gerente aqui. Não tem como ele não deixar a gente entrar.”

Antes que a gente conseguisse abrir a boca, realmente, o funcionário que recebia os novos clientes já foi o cumprimentando como a um velho amigo. Ele pediu uma mesa, ao que foi informado que teríamos pelo menos uma hora de espera. Nos olhamos de novo e ouvimos o grito que vinha da distância das nossas pesquisas abandonadas. E dos nossos estômagos também, tão desamparados quanto. Seria bastante indelicado naquele ponto se despedir e correr para o Habib’s? Teria sido talvez uma decisão importante, mas como nos desprender das amarras de simpatia e boa vontade que aquele estranho parecia ter jogado em nós? E como combater aquela lábia, quase profissional dele, com a gente e com todos com quem ele decidisse iniciar uma conversa? E era um talento quase ninja da parte dele. A gente virava para falar algo sobre a situação e duas frases depois ele já estava interagindo com as pessoas ao redor, um extrovertido quase compulsivo. E provavelmente consciente dos poderes que tinha. Quase esquecíamos do constrangimento que pesava sobre nós por causa das roupas simplórias, as quais destoavam do dressing code descolado do lugar.

“Vamos tomar grappa?”

“O que é isso?” Perguntamos quase em uníssono.

“É uma espécie de cachaça italiana, tem um sabor bem peculiar.”

“Mas isso não é muito forte pra quem está de estômago vazio?”

“Imagina, daqui a pouco a gente já vai comer. Não esquenta. Traz duas grappas aqui pra gente.”

Ao passo que o álcool ia se misturando com os goles de cerveja tomados antes, somados a uma porção de bruschettas, ambos íamos nos tornando mais alegres e tão falantes quanto nosso interlocutor. As luzes e os sons que nos invadiam de todos os lados, as conversas e risadas, os odores que vinham da cozinha, tudo isso criava uma certa aura mágica que tornava nossa vida fora dali quase que um sonho.

Depois de uns 40 minutos, mais ou menos, fomos chamados para a mesa. O ambiente dentro do restaurante era muito do que se anunciava pela sua parte externa. Os talheres eram de prata, leves como nunca havia sentido, apesar de parecerem maciços. Os garçons passavam apressados e os pratos pareciam convidativos pelas fotografias. Sabe aqueles pratos gourmet, decorados, para se comer com os olhos, além de comer com a boca? O medo que deu foi que por serem meio artísticos, esses pratos iam demorar. Lembrei da boa hora que esperei uma vez que tinha ido num restaurante francês no Arouche. A fome era tão grande quanto diminuto ficava o senso de responsabilidade. Mas nem sempre temos chance de ter conversas tão interessantes.

A Pat pediu uma massa com vegetais, cogumelos, gengibre e amêndoas. Eu pedi um filé de truta, com risotto de funghi porcini e portobelo. O Bruno pediu um steak béarnaise à manteiga, vinho branco e hortelã. E uma garrafa de vinho. Será que ele estava tentando nos embebedar?

Seguimos conversando. Eu ficava um pouco abismado com a quantidade de assuntos e a maestria como ele navegava por eles, fazendo perguntas, contando pequenas anedotas, dizendo o que a gente nem sabia que queria ouvir. Olhei no meu relógio mental, porque o de pulso tinha ficado em casa, e achei que era hora de fazer o inverso de colocar a vassoura atrás da porta: em vez de expulsar as visitas de casa, precisávamos a gente ir para lá.

Sem espaço e já meio desesperados pela noite que corria lenta e constante como um rio escuro, sugeri pedir a conta. A Pat me olhou com admiração, mas também não parava de conversar. Só aceitaríamos uma carona porque caminhar de volta para casa levaria mais tempo. A conta veio, e deu mais ou menos uns 350 reais. Tudo bem que dividindo daria uns cento e pouco para cada um, mas não era para gastar vinte, comprando umas 4 esfihas e um suco? Meu estômago travou. Por que ele não fez isso antes, quando eu precisava? A mente vagava entre contas e cálculos. Essa frugalidade ia voltar para bater na minha bunda.

De uma maneira meio natural, o Bruno pegou a conta da minha mão. Ao mesmo tempo, ele dizia - “Eu convidei, deixa que eu pago, né?” Ouvir isso parecia incrível, e os cálculos começaram a se quebrar como vidro em caquinhos. Porém, uma sensação de culpa, de abuso de limites também se instalou, e a Patrícia agiu sobre ele antes de mim. “Imagina, divide por três.” Muito justa. Ele insistiu. Ela insistia. Tive que intervir com o proverbial chute na canela por baixo da mesa. “Deixa o moço pagar, uai. A ideia de vir aqui foi dele.” Saiba receber as dádivas da vida. A generosidade desinteressada é quase um dodô nessa cidade caótica.  E assim saímos, meio envergonhados, meio agradecidos.

O papo do Bruno começou a mudar. Ele perguntou se podia nos deixar em casa, apesar de querer que eu fosse com ele para casa dele, porque ele estava sofrendo o término de um relacionamento, e eu era uma pessoa tão legal, seria legal conversar por mais algumas horas. Nesse momento, a lucidez, que parecia ter tirado férias, deu o ar da graça. Ele não ia querer apenas conversar. Mas não havia energias sexuais envolvidas no que falávamos. Ele disse que tinha parado de tomar o antidepressivo, porque ele atrapalhava o efeito do ansiolítico. Aquilo começou a parecer um papo meio estranho. Mas a culpa de ter feito o menino pagar tudo apareceu. Que timing! A Patrícia estava com a voz embargada e uma moleza. Imaginei que a comida tinha neutralizado nossa bebedeira anterior. “Onde você mora?”

“Aqui pertinho na Aclimação. Será que podemos deixar sua amiga na sua casa e daí você fica um pouco lá comigo e vê um filme?”

“Daí você me traz de volta, mesmo se for tarde?”

“A noite é uma criança, mas sim, trago sim.”

Sugeri que ele esperasse no carro, eu subiria com a Patrícia, que naquele momento tava bem cansada. Ele quis ir junto. De novo, qual o grande problema de levar um estranho que você acabou de conhecer para sua casa? Ele já tinha falado tanto dele que era praticamente um amigo de anos.

Subimos, deixei a Patrícia deitada na minha cama, peguei uma bolsa, na qual coloquei uma blusa e descemos. Devia ser mais ou menos umas nove da noite. Ia fazer companhia para ele até meia-noite, e bem no estilo Cinderela, sem o boa-noite, esperava eu, estaria de volta em casa e poderia escrever umas duas páginas madrugada adentro para dormir com uma leve sensação de algum trabalho realizado.

***

Chegamos ao prédio dos pais dele. Eles haviam viajado, e o deixado cuidar do apartamento. Via-se que cuidava muito bem, levando estranhos recém-conhecidos para lá. Antes tínhamos passado numa conveniência para comprar cerveja. Eu já estava cansado de beber, e porque estava indo para um lugar desconhecido, preferia me manter o mais sóbrio possível. Pelo andar da noite, percebia uma certa lerdeza em reagir prontamente.

O apartamento ficava em um prédio do bairro da Aclimação, bairro residencial, ainda que central, um dos redutos da classe média-alta paulistana. Ao abrir a porta, fui tomado de uma leve vertigem. A sala era mais ou menos do tamanho do meu apartamento, havia uma escultura no centro da sala, parecia uma cabeça gigante meio abstrata. Parecia aquela coisa do elefante na sala. Havia quadros que pareciam bem caros pendurados, vários ambientes discerníveis e um corredor levando ao resto do que imaginava ser um daqueles apartamentos nos quais podia me perder.

Acredito que Bruno percebeu minha surpresa, e tomou a minha falta de palavras por um deslumbramento. Ao passo que eu lia tudo aquilo como sinais de riqueza e esbanjamento, me chocava e pensava o que eu tinha ido fazer ali.

A primeira coisa que Bruno fez ao entrar foi pegar uns saquinhos em uma gaveta, rasgar a ponta, fazer algumas carreiras e me oferecer uma para cheirar. Não sou muito moralista com questões de drogas, mas sempre tive uma grande preguiça com drogas inalantes ou injetáveis. Incontáveis vezes neguei e mesmo gostando de experimentar coisas novas, posso dizer que jamais cheirei uma carreira na vida. Recusei de forma educada e mal sabia eu que aquelas seriam as primeiras carreiras de muitas que seriam esticadas naquela noite.

Ele seguia contando mil histórias e conversando, pegou a sacola com as cervejas e abriu a janela. Acho que não comentei ainda que estávamos no 17o andar. Entrou uma lufada de vento, a noite estava agradável. Com uma cerveja na mão, com um cigarro no meio dos dedos da mesma mão, ele usou a outra para se alçar e sentar no parapeito da janela!

“Moço, des...- desce daí, p-por favor.” Minha voz falhava, ao passo que minha vertigem atingia as alturas. Minha perna tremia e eu não conseguia me mover. Comecei imaginar que ele, já tendo bebido tanto, por qualquer erro de cálculo no movimento do ombro, poderia escorregar e cair. É claro que eles iam olhar as câmeras do elevador. Acabou minha vida. Nunca iam acreditar que eu não o havia empurrado com o objetivo de roubar coisas na casa.

“Não se preocupa. Eu tou acostumado a sentar aqui.” Será mesmo que ele estava acostumado ou estava me provocando de alguma forma? Não me lembrava de ter passado tanto medo por osmose há anos.

Pedi com tanta veemência, e com medo, nem queria encostar nele, ele deu um pequeno saltinho de volta para dentro do apartamento. Minha vontade era pegar as minhas coisas e ir embora. Estava realmente brincando com a sorte. 

Deitamos no sofá grande, acho que cabiam umas dez pessoas naquele sofá e ele falou:

“Vamos ver o filme que você disse que veio ver comigo.” Disse isso e pegou um controle remoto. Apertou um botão e em vez de ligar uma televisão, uma tela começou a descer por uma das paredes. E um projetor disparou um facho de luz e ele abriu um sorriso.

Devo ter feito uma careta, porque aquilo, em vez de me alegrar me deixava mais incomodado. Sempre fui um cara bem comedido com grana. Não gostava de comprar supérfluos, não gostava de consumir, na verdade. Por vezes era arrastado por mamãe, por alguma amiga ou namorado para comprar roupa e qualquer outra coisa. Sofria ao fazer mercado. E de repente, aquele luxo todo me lembrava minhas aulas sobre Marx e o valor de uso e o valor de troca. Não que eu fosse profundamente marxista. Mas aquele luxo me incomodava mais do que deslumbrava. E inconsciente disso, Bruno começou a jogar, na tentativa de me seduzir. Ah, se ele soubesse! Fiquei quieto enquanto ele tentava se enrolar em mim, já me abraçando pela cintura. Começou a falar que sabia que eu tinha ido ali pra ficar com ele e não pra ver nenhum filme.

“Sério, eu vim te fazer companhia e ver filme mesmo, porque você falou que tava mal do término.”

Ele me beijou e eu me deixei beijar. Ele foi dizendo que seria ótimo a gente ir pra Paris algum final de semana próximo, que a gente ia se divertir, e eu pensando que eu tinha aula pra dar, nem sabia se meu passaporte estava válido ou vencido, e que não ia ter meios de ir pra Paris. Que nosso namoro ia ser regado de champanhe e passeios. Ia ficando assustado com o papo, que se misturava com as aventuras que ele tinha com o ex dele, chef de cozinha, o ex modelo, os remédios que ele estava tomando, o antidepressivo, o ansiolítico, e eu pensando, gente, e ele não parou de beber a noite inteira e está agora também na cocaína. E a gente já estava namorando por acaso?

Ele retomou as investidas dele, passando a mão pelo meu corpo. Sempre tive uma grande dificuldade de rejeitar pessoas. Tendo a prestar atenção em qualquer algo positivo que elas tenham e foco nessa caraterística. Me abri para o beijo. Mas não podia me desligar dos eventos que antecediam aquele. Ele, impaciente, descia a mão pelo meu torso e buscava uma ereção inexistente, uma que não fazia a menor questão de aparecer. Tentei me concentrar. Pensar em coisas calientes.

“Desculpa, Bruno. Acho que não vai rolar.”

De repente, ele me odiaria tanto que faria questão de me ver longe o mais rápido possível. Poderia voltar para minha casa e tudo voltaria ao normal. Já era quase meia-noite.

“Tudo bem. Acontece, né? E olha que você nem cheirou uma carreirinha.”

Rimos, meio sem graça. A coisa mais legal daquele momento foi que em vez de sentir vergonha por ter falhado, ter percebido que meu corpo tinha limites, que nem sempre ele iria funcionar, e que tudo bem por isso.

“Acabou o meu pó. Será que você iria comigo comprar mais?” Claro que o pó tinha acabado. Ele não parava de fazer as carreiras e mandar pra dentro. Mas poderia aproveitar esse momento de saída para buscar algo e pedir para ele me deixar perto de casa ou lá mesmo. Peguei minha bolsa e passei a alça pelo pescoço.

Ele pegou a chave do carro, colocou a carteira no bolso e me viu com a bolsa.

“Que isso? Você não vai embora agora, né?”

“Ah, pensei que talvez fosse melhor, já que não deu certo pra gente ficar.”

“Para com isso, queria que você ficasse mais um pouco.”

Pensei que deveria ser mais assertivo. Dizer que era melhor mesmo eu ir embora. Mas não. Por aquela mesma força estranha que tinha me tornado meio aparvalhado a noite toda, me vi colocando a bolsa de volta no sofá e indo com ele para o elevador.

***

Vamos dirigindo e eu preocupado se alguma blitz parasse a gente. Durante a noite toda, o Bruno não tinha parado de beber e cheirar. Será que isso não traria problemas para ele na direção? Parecia que depois do momento na janela, qualquer risco era pequeno e ignorável. Ele foi dirigindo pelas ruas do centro até chegar à região da Paulista. Perto do Parque Trianon, já fechado naquela hora, ele encostou o carro e chamou um moço que estava sentado em um banco de cimento. Ele se aproximou e perguntou se a gente queria fazer um programa. Eu estava no banco do passageiro, mas fiquei tenso e quieto. Por cima de mim, os dois começaram a desenvolver uma conversa, na qual Bruno perguntou se ele tinha pó pra vender, quanto era, de onde ele era.

“Nossa, meus pais estão passeando pela sua cidade.”

“Sério?”

E lá estavam eles, de novo, sendo super amigos de longa data, aparentemente. Só então percebi o modus operandi dele de forma mais completa. Sem que eu nem conseguisse roubar o turno da conversa, ele já havia descoberto que o rapaz não era traficante, mas o irmão dele sim, porém estava sem estoque naquele momento. De alguma forma que nem notei, trocaram telefone e seguimos para outra boca que ele conhecia. Eu só me deixava levar pelo movimento do carro e me perdia na brisa geladinha da noite, ouvindo a voz de Bruno ao fundo, num blablablá ininterrupto. Quando dei por mim de novo, estávamos na rua atrás da minha casa. Se eu tivesse sido mais firme, poderia estar com a minha bolsa, e, num cenário menos otimista, saltaria do carro num momento que ele diminuísse a aceleração. Mas não. Ele chamou um rapaz que estava numa rodinha de pessoas. Dessa vez eles conversaram pela janela dele, e trocaram o dinheiro pela mercadoria. Me senti bastante infrator, e pensei: pronto, não vai rolar mais nada de ruim nessa noite, já chegamos no fundo do poço.

***

“Eu liguei pro Roberto.”

“Quem é Roberto?”

“Aquele cara lá do Trianon.”

“Você chamou um michê aqui?”

“Sim, já que não deu certo de a gente transar, chamei ele.”

“Então vou embora antes de ele chegar. Não quero ter nada a ver com isso.”

“Mas era isso que eu não queria. É meio perigoso eu ficar sozinho aqui em casa com alguém que eu não conheço direito. Você me faz companhia?”

Como se eu fosse um velho amigo, não é mesmo? Assenti, mais por cansaço do que por achar estar fazendo a coisa certa. Era já umas 5 da manhã, e o sol surgia, deixando o céu tingido de uma luz fraca. O moço chegou, o tal de Roberto. Me cumprimentou, uma simpatia. O Bruno me colocou em uma sala menor, adjacente àquela grande sala com a escultura. Ali havia uma televisão. Eles se encaminharam para algum quarto dentro da casa e fiquei ali parado, no silêncio, pensando se minha inação me coroaria com o testemunho de gemidos e sons libidinosos, os quais eu estava com zero vontade de ouvir. Mas a casa era grande, e só ouvia os sons da alvorada. Liguei a televisão e estava na Globo. Por algum milagre, apesar de não ter usado nenhuma droga, estava completamente desperto. E não seria inteligente cair no sono naquele momento. O que eu faria se o Bruno gritasse? E se o rapaz, impressionado com a opulência, decidisse matar o Bruno, eu, e roubar o que conseguisse carregar?

Estava passando Globo Rural. Há anos eu não via esse programa, afinal, que domingo eu estaria acordado naquele horário? E se estivesse, estaria destruído após alguma festinha ou balada. O repórter falava e os bois passavam e eu sentia que tudo aquilo era um sonho, um pesadelo de mau gosto. Ele estava rindo da minha cara?

Ouvi uma porta se abrindo, não havia passado nem uns 20 minutos. Imaginei que eles deveriam ter esquecido alguma coisa. Talvez viessem me chamar para participar. Será que eu iria? Bruno apareceu, enquadrado pelo batente da porta. Estava vestido, e com uma cara de poucos amigos. Acho que foi um dos únicos momentos que vi algum tipo de emoção negativa vazar dele. Mesmo parecendo artificial, ele estava sempre animado e falante.

“O Roberto broxou.”

Fiquei paralisado. O profissional do sexo não conseguiu exercer o seu trabalho? Queria rir, mas percebi que isso não ornaria com o momento. E senti pena também. Acho o sexo algo muito valioso, uma forma de expressão e de comunhão. Ser privado disso era como privar alguém de água ou comida.

“Eita, e agora?”

Roberto entrou, meio sem graça, se desculpando. “Foi muito pó e eu gozei algumas vezes essa noite já, não vai rolar.”

Pensei se mesmo assim Bruno ia pagar pelo programa, mas nem perguntei nada.

Daí, para minha surpresa, o Bruno perguntou se eu o acompanharia por uns momentos. Deixamos Roberto sentado onde eu estava antes, vendo Globo Rural, e fomos por corredores, até que entramos em um banheiro amplo. Achei estranho que fôssemos deixar nosso convidado da noite sozinho na casa. Bruno fechou a porta atrás de nós, abriu uma gaveta. Não sabia nem mais o que esperar. Seria algo para me machucar? Ele saca um consolo, de um tipo que eu nunca tinha visto antes. Eu conhecia aqueles que eram maciços, mas o dele era oco, com um espaço na base para colocar os dedos. Ele pede, com certa reticência, mas sem muita vergonha:

“Me come com isso aqui?”

“Mas e o Roberto? Por que não pedir isso pra ele?”

“Ah, ele tá meio cansado, e como não rolou de ele me comer, achei melhor não pagar nada pra ele, mas não quis pedir isso, senão ele poderia cobrar.”

Isso, eu era mais barato. Nunca tinha usado brinquedos, apesar de ter a curiosidade. Mas estava com libido negativa, se é que isso era possível. Ele abaixou a calça e se colocou na minha frente e eu olhava para o consolo, para aquela bunda peluda parada na minha frente, e me senti um enfermeiro, prestes a fazer um exame. Era como se eu tivesse desmaiado e visse aquela cena ali de fora, como numa tela de cinema. Tentava dar um nome para aquilo que estava acontecendo. Eu não tinha forças para dizer não, mas sentia uma vergonha, uma pena tão grande dele. Tão rico e tão vazio. Precisava se sentir preenchido de alguma forma, por onde quer que pudesse. Fui mecanicamente me movimentando, até que meu pulso doeu. Foi um dos primeiros momentos em que ele ficou silencioso quase a noite toda. Ele dava pequenos gemidos, mas não olhava para trás, e fiquei feliz com a ausência de contato visual. Se trocássemos sentimentos, se ele notasse o quanto eu estava desconfortável ali e se eu notasse o vazio nos olhos dele, talvez aquele momento precário iria ruir.

Fomos interrompidos pelo som do interfone. Coloquei o consolo em cima da pia, ele levantou a calça e falou que era o irmão do Roberto.

“O irmão dele?”

“É que acabou meu pó e ele veio buscar o Roberto também com a moto.”

“Ah, então ele já vai embora? Eu aproveito e vou junto.”

Bruno saiu, atendeu o interfone e pediu para o moço subir.

Subir? Eita, mais um estranho aqui? Mais chances de dar uma grande merda.

O moço subiu, segurando dois capacetes de motociclista. O Bruno pegou a mercadoria dele, cheirou, enquanto o traficante avisava que era pra ele ir com calma, que aquela era da boa. Ele começou então a ter dor de cabeça. Pensei, pronto, agora só faltava isso, a gente ser acusado de ter causado uma overdose no menino.

Enquanto ele melhorava, pediu que a gente ajudasse a limpar o apartamento da bagunça da nossa visita. Tinha pequenos saquinhos jogados por toda a sala, garrafas e latinhas de cerveja. Olhei em volta e estávamos os 3 marmanjos recolhendo lixo pela casa, enquanto o Bruno se recuperava, encostado na parede. 

Tendo recolhido tudo, e vendo que os dois irmãos não iam fazer nada de mal com a gente, eram pessoas tranquilas, apesar de trabalharem na intensa noite paulistana, decidimos descer. O sol já alto e claro, devia ser umas 9 horas da manhã.

O Bruno avisou que as compras da noite tinham quase acabado com o dinheiro dele. Ele teria que ir para o caixa automático tirar o dinheiro da droga nova e da noite com o Roberto. Eu disse que não iria acompanhá-los. Ele disse que seria perigoso. Eu respondi que ele tinha uma sorte grande de se safar do perigo, e com uma determinação retardatária, com minha bolsa já a tiracolo, disse que iria embora.

“Você vai como?”

“Não sei, tem ônibus daqui perto pra minha casa.” Não fazia ideia de como iria, mas me agarrei à vontade de sair correndo dali e voltar para o meu lar e para contar para a Patrícia todas as desventuras daquela noite.

“Olha, eu tenho essa nota de dez reais aqui. Será que dá pra você pagar um táxi até a sua casa?”

Eu tinha dinheiro na carteira. Fiquei de novo paralisado pela “generosidade” dele. Aquela nota ali dançando na minha mão, eu sem saber se dava um soco nele, se me colocava na mesma posição dos moços ali comigo na sala, mas claro, bem mais barato, e pensei, realmente, com tudo o que eu tinha passado, dez reais representava bem o que eu merecia.




terça-feira, 3 de novembro de 2020

Desenlace


Me vejo seminu sentindo uma brisa 

Leve e o tapete acarinha meus pés.

Tenho vergonha e penso

Apenas eu vou me desnudar?

Parece injusto, mas aquiesço.


No momento que a primeira 

corda encontra a minha pele

Movimentos se reduzem.

Eu ainda não faço ideia de para onde 

ela vai correr

E como vai me abraçar 

Feito jararaca.


Sinto o calor do seu corpo e o 

Olhar concentrado

Fazendo artes na sua cabeça

E deixando as mãos traduzirem

No idioma das cordas.


Olho tudo acuado,

Ao mesmo tempo em que 

Sinto meus músculos 

Destensionarem

Calo e confio.


As cordas dançam mais

Fazendo piruetas e correndo

Elas tocam meu corpo,

Cada vez mais enroladas,

Mais íntimas,

Pedindo licença do seu jeito 

Silente. Estudando os ângulos

Contrapondo as forças

Desafiando a gravidade.


Vou movendo o que ainda posso,

No ritmo hipnótico da música.

Me perco em admirações 

dos pequenos tufos na sua axila

Imagino os pubianos que só vi de longe


Estou suspenso no ar,

Minhas mãos doem,

Mas não sei se porque querem te tocar

Ou porque o sangue lhes falta.

Metade de mim vai jazer no chão.


Agora, tendo já suportado meu peso, as 

cordas se apertam

Libertando gemidos que me confundem

Dor e prazer

Sinto seu pé contra mim e ao

Meu favor.


Ao final, a música fica distante

As cordas vão se acumulando,

Flácidas em meu corpo flácido

Um abraço sela nossa troca

Queria que ele durasse mais.


Ainda sinto as amarras

Ainda sinto o toque

Ainda sinto um tesão

Podia ter tesão?

Que explode sem que você veja

Naquela mesma noite.


Algo ficou amarrado e suspenso

Na minha mente. Parece que é 

uma pergunta:

Quando será

A próxima vez?


quinta-feira, 2 de julho de 2020

Perto do coração (selvagem?)

A leitura de Clarice se colocou como uma espécie de armadilha para ele. Por mais que lesse palavras escritas há tanto tempo, entrava na vida de Joana na tentativa de esquecer a sua própria. A forma como o cotidiano ganhava novos significados trazia pensamentos e presentificavam o fiasco e o desespero. Porque agora ele entendia.

Ele havia sido forçado a entender. Não parecia mais haver mistérios ou acasos, não havia mais desculpas nem retorno dos seus atos. Ele precisava revisitar o passado e daí entenderia o presente. Ele precisava dar sentido ao que havia sido e compreender cada passo, para então desvendar a origem da sua vergonha.

Mas que vergonha havia de ser esta? A vergonha de desnudar-se a luz do dia. Ele arrancava lentamente sua pele e mostrava contente suas entranhas, ao contar de aventuras na escada, da facilidade como possuía o próximo, deixando escorrer verdades pela bochecha e pelo chão. Cospe, não engole. E brota da terra pervertido e libidinoso. Mas será que o outro, estudante da lei e da ordem, poderia transcender sua natureza e aceitar a imoralidade alheia sem processos, julgamentos e sanções?

Mesmo sabendo dos riscos, porque dentro do isolamento o que se busca é felicidade e conexão, poderiam aquelas verdades atiradas como balas, assustar a presa, minar as relações, um pisar de galhos do caçador desleixado? Seria o fim do acolhimento respeitoso, uma sabotagem da calmaria recém-encontrada, enquanto lá fora é pura tempestade?

Mas é assim que se cria intimidade: imediata, artificial, avanlanchica. Porque era necessário saber se o outro aceitaria as trevas alheias, sem tremer, e logo. Porque a intimidade é uma ampulheta, desce o fio de grão em grão. Dá tempo de decantar. Mas o tempo não seria relativo, ainda mais esses tempos de cólera?

Os dois encontros voltavam como um filme que se repetia ao terminar. Seria o novo método de autotortura? Na primeira vez, histórias em torrente como um rio de corredeiras, mas ao sair, seco, a sensação de não saber nada. Uma boca, dois ouvidos, lembra? Como completar o quebra-cabeça, se você dá peças e não ganha nenhuma em troca? Como entender a figura geral sem o silêncio e a escuta?

Mas a urgência, a vontade de ser compreendido, em último caso, amado, transformam uma língua em duas, e mesmo tremendo, décadas de memórias brotam tal qual nascente de rio, as melhores, mais sedutoras se acotovelando para sair e vão vazando como um balão que murcha e voa descontrolado.

E a experiência ensina. A culpa renegocia os termos.   Na segunda conversa, menos histórias e mais perguntas. Quem era aquele estranho tão fascinante, que o havia feito perder a timidez, os pensamentos sabotadores? Por que alguém tão diferente e aparentemente interessante iria conhecer alguém tão comum quanto ele? Não seria mais fácil obedecer ao apartamento social, o cotidiano e o novo? Cada um no seu andar, no seu número, no seu quadrado. Vidas já ocupadas por amigos, demandas prévias. Quem quer mais um? E por que mais um? Qual o motivo ulterior, a vantagem estratégica de ampliar o círculo nessa direção específica. Não há sempre uma motivação que gera os atos e neutraliza a apatia da lei?

Se é mais fácil ser superficial, para que cavar, desvelar, descobrir? Por que essa vontade de intimidade se torna tão imperiosa e pungente? E causa dor na separação, medo no reviver da situação e ansiedade pela próxima aproximação. Na vez seguinte, tudo será diferente. Porque ele será diferente, ainda impaciente e urgente, sondante e testador de novos limites. Ele será punido por cruzar certas linhas. Vai perder a linha? Ou será recompensado com jorros de verdades ocultas, não apenas gotas que batem em uma superfície educada e evasiva?

A grande vontade que ele tem é a de talvez quebrar as regras sociais preestabelecidas, alargando o pescoço da ampulheta, permitindo blocos maciços atravessarem, do tamanho de nós na garganta.É uma grande receita sendo preparada de como transformar pequenas conversas do elevador, bons dias, tardes e noite em verdades ocultas, primitivas, recônditas. Mas parece, que como esse texto, ao procurar respostas, ele encontra mais e mais perguntas. Será que deve escrever para o outro? Quais são seus interesses em comum? Ler em galope e não em trote. Para chegar mais rápido no destino e se reencontrar. Levando no bolso um segredo, o grande segredo indizível. Só aparece uma pequena corda, ao qual o segredo, lindo e monstruoso, está amarrado, e depende do outro a disposição e vontade de puxar e revelar.

O que se deve fazer agora é contar com a paciência proverbial e aguardar, observar atentamente como serão os próximos movimentos: centrífugos ou centrípetos? Sem sentido? Como sempre, o tenebroso, o ominoso, que espreita na virada de qualquer esquina, dirá.