segunda-feira, 29 de março de 2010

Se vou

Às vezes, tentei desenvolver uma nova forma de escrita. A escrita a 4 mãos. Foram diversas tentativas de um exercício interessante. Veja lá: eu escrevo um trecho, mando ele pra outra pessoa, que vai lê-lo inspirar-se e continuar o jogo. O texto vai crescendo e indo pra lugares inimaginados, você tem que desvendar problemas colocados, criar novos, ir e vir, experimentar coisas que jamais escreveria. Muito divertido, não é? Mas houve um agravante. Não consegui até hoje terminar nenhum dos 4 textos começados. Bom, um foi terminado, mas ainda não passou pela estruturação final. Creio que logo ele estará aqui. Ele será talvez a única experiência bem sucedida. Mas os outros textos tinham seu valor, e eu não sou homem de ficar começando e largando na metade. Decidi que se o outro partido renega a escrita, como diz o ditado, "quando queres algo bem feito (ou pelo menos feito), faça você mesmo".

O texto que segue é fruto do que surgiu quando fui escrever com o Rodrigo. O que foi dele, salvo algumas pequenas mudanças, está em itálico. O resto é meu. Espero que ele goste do final (risos).


***

Eu abro os olhos, mas a escuridão persiste. Tento me localizar. Não vejo nada. Sinto frio. Estou no chão. Sento-me sem conseguir enxergar as minhas mãos que coloco a poucos centímetros do meu rosto. Toco meu rosto. Sinto uma aderência estranha Sangue. Meu? Meu nariz dói. Mas não me lembro de ter batido meu nariz. Não me lembro de nada. Escuto ao longe um som de metal chocando-se contra metal. Parece que alguém está martelando algo. Um som repetitivo, ritmado. Ping... ping... ping...

Vou tentando sentir as outras partes do meu corpo, e as sensações vão me invadindo, como se abrir os olhos tivesse sido empurrar a primeira peça de uma fileira de dominós em pé. Um derrubando o outro, uma sensação sobrepondo-se a outra, sobrepondo-se e complementando. Frio. Estico o braço e tento tatear numa cegueira desesperadora, a saída dessa escuridão desconhecida. Flashes atravessam minha mente. Começo a me lembrar. Mas me lembro do sonho. Um céu azul, de um azul que eu nunca havia visto antes. Um dia modorrento, abafado. Nenhum som, exceto o de meus passos nessa estrada. Mas que estrada é essa? Vejo uma menina. “Olá!” diz ela numa voz que destoa de sua aparência pueril e delicada. Parece uma velha falando. “Eu sou Alice e bem-vindo ao país da maravilhas!” E uma risada que parecia carregar toda a malícia do mundo. A risada do diabo em pessoa, naquela pequena loira ali parada na minha frente naquela estrada. E a escuridão.

Luz? Alguém disse luz? Não, ninguém disse, fui eu quem a acendi. Aproveito e olho no espelho, mas já não me enxergo mais. O tempo parece ter levado de mim o que nunca descobri realmente ter. Quando ando pelas ruas sorrio, tentando despertar nas pessoas alguma curiosidade. Ninguém vê. Corro para ficar suado, e ainda assim ninguém se pergunta por que nesse dia de frio a água corre em bicas pelo meu corpo. O que foi que aconteceu comigo? Simulo chorar. Tentei comover, mas nem a senhorinha com o guarda-chuva parece se importar. Quando foi a última vez que vi minha sombra refletida no chão? Quando foi a última vez de que gostei da imagem envergonhada no espelho? Não me lembro. Não agora. Alguém, por favor, apague essa maldita luz.

Mas meu braço não responde. Sinto as veias das minhas têmporas latejarem e um fio de suor escorrendo pela nuca, serpenteando espinha abaixo. Sinto um gosto amargo na boca e fico tentando lembrar a última coisa que comi. Sinto minha bexiga doendo e mijo displicentemente respingando no chão. O mijo quente não pára. Quantas cervejas tomei ontem? A imagem da loira dos meus sonhos, era ela que segurava um guarda-chuva? Tenho que lembrar nunca mais tomar ácido de novo. “É melhor que bala, mano” ele disse. Mas aqui estou eu, com esse gosto de podre na boca, minha cabeça quase explodindo, essa luz me cegando e minha imagem distorcida no espelho. Minha mãe já dizia que meu reflexo refletia em tudo o que eu fazia, e tudo o que eu fazia refletia em mim. Que bom que já não tenho que ouvir mais esses absurdos existencialistas da velha cotidianamente, e sim, a segura uma vez por mês que lhe agracio com minha presença pelo telefone. O que vale mais? Sofrer um pouquinho a cada dia, ou muito em ocasiões particulares? Apago a luz e penso como cheguei em casa. Com os olhos fechados, de forma a suavizar a dor, vou sentindo o caminho de volta a minha cama, mas ao estender a mão para afastar os lençóis, percebo que há algo ali.

Fecho os olhos apesar da escuridão. Uma cena se forma na minha mente. Não faz muito tempo. Naquela época meu pai ainda costumava chegar tarde do trabalho. Costumava ser por volta das 11 da noite quando eu e meus irmãos ouvíamos a campainha. Embora ele não fosse visita, e nunca era, pois a casa era dele mesmo, meu bom pai sempre fazia questão de tocá-la. Ele tocava a campainha e nós corríamos para a cozinha para ver o montão de delícias que ele nos trouxera. Mas nesse dia foi diferente. Diferente não só porque havia chovido durante todo o dia, mas diferente porque seus olhos pareciam ter gritado durante as últimas horas, num desespero latejante e comovente. Ele nos olhou e sorriu com o canto da boca. Havia mesmo algo errado naquele sorriso. Voltamos para a sala e nos amontoamos entre as dezenas de cartas com números e caras engraçadas. Depois de alguns minutos, escutei o que havia acontecido. Ele havia tirado uma remessa errada de um pedido lá da fábrica de parafusos em que trabalhava. O transtorno tinha gerado uma dívida imensa para a companhia que não via outra razão senão demiti-lo. Seja lá o que isso significasse, estávamos desempregados. Naquela época, papai já andava meio estranho com a morte do nosso avô. Ele não reagia bem desde aquela tarde de outono no hospital, quando recebemos a notícia de que vovô não reagira ao tratamento e havia falecido. Agora, pensando melhor, havia um par de meses que meu pai não nos trazia os mimos açucarados de sempre. Ele realmente não andava bem. Logo depois que saí do banho, percebi que papai deixara um embrulho em cima do armário. Lembro até hoje daquela cena. Fiquei curioso. Depois que todos haviam dormido, fui à cozinha. Desembrulhava calmamente aquelas folhas amassadas de jornal, que traziam uma cobertura especial da vinda de Marley O’Neill ao Brasil, quando quase caí da cadeira. O que aquilo significava? Por que meu pai o havia enrolado daquela forma? Fui direto para cama, soluçando de espanto. Longos anos se passaram. Dez ou doze anos depois, mesmo depois da morte do meu pai, o embrulho continuava ali. Foi aí que um dia decidi dar vida a ele. O estranho é que eu não me lembrava de tê-lo deixado sob o lençol. Alguém havia estado ali.

Deitei-me, convulsionado por essa mescla de pensamentos, memórias da minha infância, meus pais, bem eu que estive fugindo da minha família nos últimos cinco anos e tinha que lutar com todas as minhas forças pra aguentar e sair ileso de eventos como natais e aniversários (já que para os velórios eu sempre tinha uma boa desculpa). Seria por meu relógio de cabeceira piscar cinco minutos passados das onze? Seria o barulho de chuva que ainda caia do lado de fora da janela? Seria um repentino medo da presença que espreitava nas sombras, mas que eu não podia ver, ou sacar se era amigo ou inimigo? Por um momento senti que o ar parecia eletrizado e tudo se movia mais devagar. Estaria eu ficando louco? Encostei as costas da mão no embrulho e mesmo estando ele envolto em folhas amassadas de papel, podia sentir o frio metálico e sua dureza. Fechei a mão abraçando aquele objeto, sentido seu formato, seu tamanho. Senti o coração acelerar, e ao mesmo tempo, não pude evitar que uma gargalhada explodisse no silêncio do meu quarto. Respirei fundo, assustado pela minha própria gargalhada, e uma espécie de onda de fúria e vergonha me invadiu o íntimo. Quase que incontrolavelmente senti meu pau ficando duro, mas era uma reação tão díspar, alheia ao momento, errada. Que tipo de magia negra havia naquele objeto tão odiado, naquele falo fundido que podia me excitar? Uma nova onda de culpa e remorso. Imagens começavam e se formar na penumbra, assim que a luz do luar invadiu de repente a minha janela. Já parara de chover. Abri os olhos e ele estava ali.

Lembrava dele mais baixo, menos careca. Era como se o Mestre dos magos tivesse feito uma plástica e estivesse com a cara do meu pai. Tremi, de uma forma incontrolável. Abracei a arma, enrolando melhor o papel, não queria que ele soubesse o que estava ali comigo, apesar da quase certeza de que ele era uma miragem, uma projeção psicológica que tentaria me impedir de fazer o que eu precisava fazer. Quem iria quebrar o silêncio primeiro? O silêncio de décadas? Ele me olhava profundamente. Nada transparecia. Raiva, pena, compaixão, nada! Na luz do luar, éramos só nós dois enquanto o resto do mundo parecia dormir. Parecia dia. Achei que ele fosse gargalhar como a menina do meu sonho. Ou era realidade? Ainda sentia no ar um perfume que não era o meu e não emanava daquela aparição. Era um perfume de mulher. Lembrei-me da senhora da sombrinha. Por que ela parecia tão triste? Por que eu não me dispus a ajudá-la? Por que ela voltava a povoar a minha mente num momento tão delicado como esse, no qual minha vida estava por um fio?

Fechei os olhos e fiz algo que não fazia há anos. Orei. Fiz uma oração sincera, como se minha vida dependesse dela. Tentei entrar em contato com o divino, com o universo, com o grande espírito, que está lá, no final de todas as nossas contradições. Queria chorar e não conseguia. Não havia chorado quando tinha perdido o meu emprego. Não tinha chorado quando minha Marilyn Monroe tinha ido dançar sua dança em outra freguesia. Nem quando minha mãe morrera. Nem quando papai... abro os olhos e estou sozinho novamente. A presença ainda ecoa no quarto, mas a escuridão reina. Deve haver uma nuvem cobrindo a lua. Deve haver uma nuvem cobrindo a minha vida. Me sinto solitário e vazio. Mas me sinto forte. Sinto um impulso momentâneo quando percebo minha fortaleza. Quero levantar e quebrar tudo, jogar todas as minhas coisas contra a parede. Quero fazer buracos na parede na porrada. Quero queimar e cuspir em tudo. Penso em rezar de novo, como a vovó havia me ensinado, mas não consigo.

Desembrulho o pacotinho. Ela sorri para mim. Coloco o cano frio e metálico na minha boca. Bum, e tudo passa, eu fico em paz. Só uma apertadinha, um leve movimento dos dedos, e todos os meus problemas estão solucionados. Não tem que procurar mais emprego, nem me humilhar diante de ninguém, nem sofrer por amor, ou fingir que eu amo. Puxo o gatilho. O barulho me dói nos ouvidos. Parece que eu nunca o ouvi antes. Como acontece sempre nesses dez anos. Respiro fundo e sinto que finalmente consigo chorar. Choro e me sinto alegre. Mas não consigo rir com aquele cano enfiado na minha boca. Mamãe, me espere, ou melhor, vem aqui buscar o seu filhinho. Ouço de novo a risada e vejo de novo o guarda-chuva. Despedido. Sozinho. Adeus. Click.

O som seco do gatilho me dói nos ossos. Tiro o cano da minha boca e seco a ponta da arma com um pedaço do lençol. Por que eu nunca lembro de comprar nenhuma munição? Tanto tempo, tantos anos tentando, e sempre falta a munição. Cuspo no pia o resto de saliva que não consigo engolir. Me matei mais um pouquinho hoje. Amanhã volto a vida de morto-vivo. Embrulho a pistola nos mesmos pedaços amarelados de jornal. Guardo de novo na gaveta. È como um ato religioso, repito cada movimento da mão, do corpo. Um dia alguém vai me olhar. Um dia eu vou ser livre. Vou comprar balas bem gostosas, docinhas, que derretem na boca. Mas hoje não. Está tarde. A lua está alta. Amanhã.


quarta-feira, 17 de março de 2010

os inquilinos

Hoje eu fui ver um filme.
Ele me fez sentir como há muito não me sentia: vazio.
Ele falava de coisas que eu não sou, mas eu sei que muita gente é.
Tocou na ferida.
Quando sai da sessão, a luz se acendeu. Dentro e fora de mim.
Fui andando e percebi o verniz das revistas nas bancas de jornal.
Eu peguei meu carro imaginário e comecei a contar os passos que fui dando.
Pé ante pé, no meu carango blindado de mentirinha. Protegido (de mentirinha).
Foi então que eu comecei a olhar em volta e eu vi que ali havia pessoas.
E qual não foi a minha surpresa quando percebi que elas eram

pessoas.

O verniz das revistas se desfizeram em pó,
Isso tudo se mostrou mais uma mentira.
As pessoas passavam, ora pouco, ora muitas,
na Paulista sem fim.
Elas estavam trabalhando,
elas estavam passseando
amando de maãos dadas,
estudando com suas mochilas nas costas
preocupados,
relaxados,
havia uma mulher carregando um carrinho com um bebê ao lado de
um mendigo carregando latinhas.
Uma senhoura à la Almodovar vendendo docinhos na porta do banco fechado.

A beleza se tornou fichinha.
Me senti pobre. Pobre de espírito, pobre de solidariedade,
Me senti como naquele filme bonito de se ver,
mas que mostrava só o vazio das pessoas.

Senti os cheiros de mijo e merda e comida infestando as ruas.
Senti o peso do cansaço das pessoas se arrastando para casa.
A rotina virou nicotina. Vi as pessoas fumando. Se fumando.
A rotina virou rotten , como diriam os ingleses.

Tá tudo oco de cupim. Vai ter que trocar.
Tento terminar o último verso, com esperança.
Tento, mas, agora, não sei.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Diário de bordo - 13-07-09 - Amsterdã

Aqui estou eu de novo para contar mais um dia da grande viagem. Só para fazer uma retrospectiva, para quem ainda não leu as outras entradas, eu e meu amigo fomos à Europa e passamos por paris, Copenhagen, algumas cidades da Finlândia e um dia em Tallinn. Depois, viajamos pra Amsterdã, pra fechar com chave de ouro nosso emocionante passeio.

Porém, eu percebia que a parte de Amsterdã seria a mais complicada pelos seguintes motivos: depois de quase 20 dias fora de casa, sofrendo fortes emoções, privações, dificuldades linguísticas, você acaba sentindo aquela vontade de estar em casa, fazendo nada, descansando. Era muita informação pra digerir, sensações, movimentos, fora que ainda não tínhamos nos livrado do jet-lag: no albergue na Holanda todos os dias eu era o primeiro a levantar às 5h da manhã, afinal, no Brasil já era meio-dia. Engraçado que somente com a aproximação do final da viagem eu fui sentir tal diferença mais fortemente.

Enfim, acordamos cedo nesse dia, que era uma segunda-feira e tomamos um café reforçado para terminar de arrumar as malas e partir para o aeroporto. Apesar do aeroporto de Helsinque ser menor e menos agitado que os outros, já termos feito check-in virtual, saímos com bastante folga, pois o trauma do voo perdido nos seguia a cada dia.

Embarcamos, mas nosso voo não era direto. Passamos por Copenhagen e deu uma saudadezinha, uma sensação de déjà-vu, mas passou logo. Essa sensação se repetia ao chegarmos ao Schiphol, que havia sido nosso primeiro contato com o solo europeu.

Ao sairmos do aeroporto, nos dirigimos ao metrô. Esse, diferente do lotado metrô parisiense e do futurista metrô dinamarquês, era bem parecido com o metrô de São Paulo.

Descemos na estação indicada e fomos andando. A rua do albergue tinha um nome um pouco estranho: Kloveniersburgwal. Até assusta, né? Mas chegamos na tal rua, que chamávamos de Rua do Clóvis pra lembrar melhor. O hostel era bem localizado, do lado do metrô, num canal. A organização nos deixou surpresos. Não apenas o quarto, recebíamos também o númeor da cama em que ficaríamos. O único problema era que o quarto ficava no 3o andar.

Assim que chegamos lá, guardamos a mala e fomos dar uma volta. O dia já estava acabando, por causa da nossa escala, mas ainda dava tempo de fazer algum passeio. O primeiro lugar que o Ed queria visitar era o famigerado bairro da luz vermelha. Eu não estava tão interessado em conhecer tal lugar. Primeiro, porque minha mente ainda estava no ritmo pacato da Finlândia.
Segundo, porque tava ficando escuro, e a gente tava num lugar diferente, desconhecido.

Foi engraçado ver as mulheres nas vitrines, as músicas, os turistas fazendo piadinhas. Teve uma rua onde presenciamos uma briga entre duas prostitutas em alguma língua que eu não soube reconhecer. Um barraco. Mas engraçado. Teve umas horas que eu sentia que tava sendo perseguido. Um rapazinho de boné, que ficava indo onde a gente ia. Era um lugar meio muvucado, e eu comecei a me sentir meio mal. Não era permitido tirar foto, havia placas em todos os lugares e não queríamos ir contra pra não arrumar confusão.

No fim, com essa espécie de mal-estar, com se ainda estivéssemos meio tontos, mudança de fuso-horário (e olha que só tínhamos voltado apenas uma hora no tempo), decidimos voltar pro hotel. No caminho de volta, observamos uns mictórios que ficam no meio da rua, muito engraçados, e aproveitamos pra fazer uso desse meio pouco convencional, assim, com todo mundo olhando a sua cara enquanto você se alivia.



Fomos procurar um lugar pra comer, e acabamos decidindo comer num restaurante de comida italiana. A música tava mó legal, os garçons muito simpáticos. Depois, fomos passear nos arredores do albergue e passamos na frente de uns barzinhos legais, de lojas já fechadas.

Depois, banho, planejamento do dia seguinte e cama.