domingo, 9 de março de 2008

Vênus em escorpião

Caro Sr. R...

Venho por meio desta e com todo prazer dizer que gostaria muito de mandar-lhe a merda. Simplesmente porque você foi desagradável o suficiente para me criticar em algo que é incriticável. Vou explicar o meu ponto.

Segundo sua pessoa, faço parte de uma espécie de pessoa que tem o irritante hábito de perceber a realidade por um prisma um tanto quanto distorcido. Vejo tudo pelos olhos de Eros, tinjo tudo com as cores da paixão carnal, das ambiguidades discursivas, deixo o sexo invadir cada fresta e parte do meu serzinho, uma ontologia que deixaria Freud orgulhoso. Mas estas não foram suas palavras. Segundo você, com todo respeito implícito na frase: “You are a bitch”. Bom, colocado nestes termos, com a licença poética dos pedintes, dada ênfase à sua entonação peculiar, “Eu podia estar ‘robando’, eu podia estar ‘matano’, eu podia estar paquerando, eu podia estar transando, mas estou aqui, escrevendo pra você” com o intuito de te esclarecer o que as coisas são de fato, para que no futuro você possa evitar enunciar certas frases descuidadas que só servem para aborrecer o ouvinte e... Bom, deixe-me parar de me justificar e ir direto ao ponto.

A princípio, eu não me aborreci com o que você falou. Mas foram palavras (não necessariamente sábias) que me fizeram refletir, pensar por dias e dias, reparar nas minhas atitudes, desde as menores, e cheguei a uma conclusão. Vou enumerar os argumentos para que você possa seguir cada um com bastante cuidado e, na pressa de ler tudo logo, não pule nenhum. Veja que, mesmo contrariado, busco fazer o melhor pro meu caro leitor.

Primeiramente, queria dizer que vivemos numa era da imagem. Somos filhos da televisão. Nossa mãe bastarda. E nela, o que impera é a propaganda. Uma das grandes rainhas da pós-modernidade, ela resolveu apelar para o que havia de mais puro dentro de nós, de mais primordial e eis que o sexo está em toda parte. Qualquer produto pode ser associado a ele. Corpos, desejos, possibilidades. Você vai ficar bonito, você vai ficar legal, você vai ficar o que você quiser desde que adquira já este produto. Folheie uma revista qualquer. Veja se nas fotos, nos olhares fulminantes e nas bocas carnudas. Você não vê o sexo? Mas dizer que tudo o que influi são as propagandas, que por anos e anos vão ajudando a moldar nossa subjetividade, não basta. Vamos além.



Segundamente, vivemos numa era de satisfação rápida. Tudo precisa ser pra ontem. Tudo precisa ser agora. Um olhar vira um enlace de mãos, que vira um beijo ou qualquer outro contato, que vira uma explosão de luxúria, que finalmente vira só um fragmento, um episódio. As formas de satisfação vão se multiplicando, e vivemos a era da monomania. A era dos prazeres viciosos, porque fora deles a vida é tão insipiente, tão torpe e insossa. A vida vira uma grande adolescência, e a adolescência se resume a uma grande busca pelo prazer. Religião e hedonismo se misturam, se confundem. Ave meu corpo, cheio de músculo, bendito seja vós entre os homens e as mulheres, bendito seja o fruto de vossa malhação, capa de revista. Santa cosmética e moda do ano roguem por nós, lindos e maravilhosos, agora e na hora que alguém estiver olhando, amém. Dessa forma, como não se deixar levar pela explosão e pela força viciante que tem o calor de outro corpo, a possibilidade de poder se locupletar, de se masturbar a um, a dois, a três. Afinal, o que se tornou a instituição sexual hoje senão uma grande arte masturbatória onde a presença do outro é sempre secundária e espectral. Você tem que ter a performance perfeita, mostrar serviço, mostrar que se importa, que se interessa, que consegue, que é igual a todos os outros que vieram antes. Você você você... cadê o outro mesmo?

Terceiramente, pra minha sorte ou azar, acabei por deitar minhas mãos em um livro muito interessante, não que tenha sido extremamente loquaz em seus argumentos de forma a me convencer e imputar-me novas crenças, mas sim, parecia um espelho em que se materializava aquilo que eu pensava: que o sexo pode ser visto como uma libertação utópica. Num mundo todo coordenado e administrado, tudo controlado pelas instituições, nossa vida toda sendo invadida pelas ordenações objetivas que vão se subjetivando e nos transformando em zumbis. Daí, vem um tiozinho e fala que o sexo pode ser um dos primeiros passos para a libertação deste sistema. Um ponto onde o controle não podia se impor de forma segura e por isso mesmo, poderia permitir uma virada. Reflexo ou parte disso, temos os anos 60 e 70! Viva os hippies? Não, mas eles deram um grande passo em uma outra direção. Daí, você me perguntaria, por que eu não me torno um neo-hippie, com roupas hippies, vivendo hippiemente. Bom, porque acho que só isso também não vai servir pra solucionar o dilema. E porque tivemos os anos 80 e 90 aí no meio. Precisamos de mediação.

Quartamente, ainda que ligado aos dois fatores anteriores, antes de consolidar repressão e tabu, pode-se conhecer o que é o sexo. Bem na fase de consolidação, de construção de identidade, e não me refiro agora ao todo (apesar de saber que muitos passam pelo mesmo), pode-se ter acesso precoce ao mundo do prazer. Assim, intervalos de irracionalismos não me assustam. Animalizar-me não significa perder-me, ainda que hoje em dia, abrir mão de todo o aparato racional seja quase apenas possível em um instante. E pra se somar a isso, está meu amor pela Beleza. Ela me cativa, tudo aquilo que sinto ser elevado me toca, mexe comigo, me apazigua, me alimenta. E por ter perdido o tabu e a repressão, não me seguro pra ter, pra compartilhar dessa beleza, frui-la na forma que for possível. Usando de todos os sentidos em algum sentido.

Quintamente, segundo meu mapa astral, tenho Vênus em escorpião. Sabe o que significa isso? Em termos astrológicos, é misturar coca-cola com mentos, bicarbonato de sódio e vinagre. Sei que você diria que tal argumento é inválido, mas o importante é notar que meu critério aqui não se refere ao que você acredita ou não, mas às diversas possibilidades e explicações existentes para que você veja que as coisas são um pouco mais complexas do que parecem ser no momento, que eu falo mais do que faço, que controlo e ao mesmo tempo, não consigo controlar o que sinto, ou nem quero.

Termino com saudações cordiais de quem sabe que você diz o que diz mais pra você mesmo do que pra mim. E de quem vai continuar a ficar tão animado quanto possível, ainda que nunca ingenuamente, com o prazer que tem.

The tone