quinta-feira, 2 de julho de 2020

Perto do coração (selvagem?)

A leitura de Clarice se colocou como uma espécie de armadilha para ele. Por mais que lesse palavras escritas há tanto tempo, entrava na vida de Joana na tentativa de esquecer a sua própria. A forma como o cotidiano ganhava novos significados trazia pensamentos e presentificavam o fiasco e o desespero. Porque agora ele entendia.

Ele havia sido forçado a entender. Não parecia mais haver mistérios ou acasos, não havia mais desculpas nem retorno dos seus atos. Ele precisava revisitar o passado e daí entenderia o presente. Ele precisava dar sentido ao que havia sido e compreender cada passo, para então desvendar a origem da sua vergonha.

Mas que vergonha havia de ser esta? A vergonha de desnudar-se a luz do dia. Ele arrancava lentamente sua pele e mostrava contente suas entranhas, ao contar de aventuras na escada, da facilidade como possuía o próximo, deixando escorrer verdades pela bochecha e pelo chão. Cospe, não engole. E brota da terra pervertido e libidinoso. Mas será que o outro, estudante da lei e da ordem, poderia transcender sua natureza e aceitar a imoralidade alheia sem processos, julgamentos e sanções?

Mesmo sabendo dos riscos, porque dentro do isolamento o que se busca é felicidade e conexão, poderiam aquelas verdades atiradas como balas, assustar a presa, minar as relações, um pisar de galhos do caçador desleixado? Seria o fim do acolhimento respeitoso, uma sabotagem da calmaria recém-encontrada, enquanto lá fora é pura tempestade?

Mas é assim que se cria intimidade: imediata, artificial, avanlanchica. Porque era necessário saber se o outro aceitaria as trevas alheias, sem tremer, e logo. Porque a intimidade é uma ampulheta, desce o fio de grão em grão. Dá tempo de decantar. Mas o tempo não seria relativo, ainda mais esses tempos de cólera?

Os dois encontros voltavam como um filme que se repetia ao terminar. Seria o novo método de autotortura? Na primeira vez, histórias em torrente como um rio de corredeiras, mas ao sair, seco, a sensação de não saber nada. Uma boca, dois ouvidos, lembra? Como completar o quebra-cabeça, se você dá peças e não ganha nenhuma em troca? Como entender a figura geral sem o silêncio e a escuta?

Mas a urgência, a vontade de ser compreendido, em último caso, amado, transformam uma língua em duas, e mesmo tremendo, décadas de memórias brotam tal qual nascente de rio, as melhores, mais sedutoras se acotovelando para sair e vão vazando como um balão que murcha e voa descontrolado.

E a experiência ensina. A culpa renegocia os termos.   Na segunda conversa, menos histórias e mais perguntas. Quem era aquele estranho tão fascinante, que o havia feito perder a timidez, os pensamentos sabotadores? Por que alguém tão diferente e aparentemente interessante iria conhecer alguém tão comum quanto ele? Não seria mais fácil obedecer ao apartamento social, o cotidiano e o novo? Cada um no seu andar, no seu número, no seu quadrado. Vidas já ocupadas por amigos, demandas prévias. Quem quer mais um? E por que mais um? Qual o motivo ulterior, a vantagem estratégica de ampliar o círculo nessa direção específica. Não há sempre uma motivação que gera os atos e neutraliza a apatia da lei?

Se é mais fácil ser superficial, para que cavar, desvelar, descobrir? Por que essa vontade de intimidade se torna tão imperiosa e pungente? E causa dor na separação, medo no reviver da situação e ansiedade pela próxima aproximação. Na vez seguinte, tudo será diferente. Porque ele será diferente, ainda impaciente e urgente, sondante e testador de novos limites. Ele será punido por cruzar certas linhas. Vai perder a linha? Ou será recompensado com jorros de verdades ocultas, não apenas gotas que batem em uma superfície educada e evasiva?

A grande vontade que ele tem é a de talvez quebrar as regras sociais preestabelecidas, alargando o pescoço da ampulheta, permitindo blocos maciços atravessarem, do tamanho de nós na garganta.É uma grande receita sendo preparada de como transformar pequenas conversas do elevador, bons dias, tardes e noite em verdades ocultas, primitivas, recônditas. Mas parece, que como esse texto, ao procurar respostas, ele encontra mais e mais perguntas. Será que deve escrever para o outro? Quais são seus interesses em comum? Ler em galope e não em trote. Para chegar mais rápido no destino e se reencontrar. Levando no bolso um segredo, o grande segredo indizível. Só aparece uma pequena corda, ao qual o segredo, lindo e monstruoso, está amarrado, e depende do outro a disposição e vontade de puxar e revelar.

O que se deve fazer agora é contar com a paciência proverbial e aguardar, observar atentamente como serão os próximos movimentos: centrífugos ou centrípetos? Sem sentido? Como sempre, o tenebroso, o ominoso, que espreita na virada de qualquer esquina, dirá.



Nenhum comentário:

Postar um comentário