terça-feira, 22 de junho de 2021

Pequena resenha emocional de uma jornada de leitura: Gramática Pedagógica do Português Brasileiro

Ano passado foi mesmo um ano atípico. Muita coisa ruim aconteceu, ainda está acontecendo. Mas algumas coisas boas aconteceram também. Li um livro e queria contar como foi a experiência. Na verdade, ano passado li cinquenta livros. Contei porque tenho um aplicativo, chama-se Goodreads, no qual vou lançando as leituras atuais e as que desejo ler no futuro. Vejo o que os amigos estão lendo, é bem legal. Um desses livros, na verdade, não consta nos cinquenta porque só terminei ele agora em 2021. Então vai entrar na contagem deste ano. É sobre ele que logo vou escrever.

Antes, vale lembrar que pode parecer algo meio lugar-comum que eu tenha lido tantos livros, que esse seja um número até razoável para alguém que trabalha com a literatura e gosta tanto ler. Não é. A vida social ou o trabalho tendem a reduzir bastante meu tempo de leitura livre e minha atenção, então nunca havia chegado nem a trinta livros por ano. Eis que no ano passado a quarentena se ofereceu como uma oportunidade para que eu lesse mais, como forma de entender o que estava acontecendo à minha volta, como forma de respirar um pouco o ar de uma realidade outra, que não essa em que estávamos vivendo. Li de tudo: (auto)biografias, livros teóricos, romances, contos, poesia. Um desses livros foi a Gramática Pedagógica do Português Brasileiro, do Marcos Bagno.

Cheguei a esse livro por uma série de coincidências. Trabalhando no curso de Linguagens, me foi atribuída uma disciplina chamada Análise linguística do português. Conversando com uma amiga muito fofa, que é da área da língua portuguesa, colecionadora de gramáticas, a Renata, decidi que iria fazer com as/os estudantes um estudo comparativo de algumas gramáticas da língua portuguesa. Em vez de fazer eles decorarem regras, por que não pensarmos em critérios para encontrar melhores materiais de consulta e pesquisa, aqueles que melhor refletissem a prática de cada um(a)? Comecei a pesquisar na internet e encontrei a introdução dessa gramática do Bagno. Li e gostei muito do que ele propunha ser seu objetivo e a forma como ele havia organizado seu estudo. Fui pesquisar e um golpe de sorte: o preço da gramática era R$ 190,00, mas estava numa promoção na Amazon por R$88,00. Comprei sem nem pensar duas vezes. Tinha adquirido, então, minha primeira gramática de língua materna completa e não escolar. 

Quando ela chegou em casa, nova surpresa. Era um livro com mais de mil páginas, capa dura, cheio de fotos, com várias partes e capítulos (cinco partes e vinte e dois capítulos, para ser mais exato). Comecei a ler os primeiros capítulos, movido por uma curiosidade. Eram capítulos mais teóricos, porém escritos de uma maneira tão vibrante, tão sincera e direta, que a leitura foi fluindo. Muitas das coisas que ele trazia eram coisas que eu já havia estudado sobre a linguística. Outras eu nem me lembrava e muitas eram novidades. Não sabia o quanto eu não sabia sobre a nossa língua.

Havia, além da teoria, muitos exemplos, com tabelas, quadros. Em muitos momentos comparações com outras línguas apareciam. Uma das seções iniciais da gramática era sobre a história da língua portuguesa do Brasil. Era um tipo de coisa que eu não tinha estudado na faculdade, não pelo menos de forma tão contextualizada e didática. E não apenas nessas partes, mas em todo percurso da gramática, exemplos da língua em uso em séculos anteriores mostravam como aquilo que alguns consideram erros são fenômenos que ocorrem há séculos. Em vários trechos, ao falar sobre as transformações da língua, o autor fazia considerações sobre como a língua pode vir a se desenvolver: passado, presente e futuro da língua, num jogo dinâmico, que deixava seu texto mais instigante, especulativo.

Apesar de ser um livro técnico, com um discurso bem carregado no que concerne aos conceitos da linguística, o que dava a ele consistência científica, ele lembrava em algumas partes um romance, uma metanarrativa da língua. Havia surpresas interessantes, como um dos exemplos de uso da língua em que o autor colocou: “Sérgio apresentou o namorado para a família.” Ele tinha indicado que a língua era uma instância política, mas o exemplo falava sobre verbos, de uma maneira a desnaturalizar uma heteronormatividade até mesmo inconsciente (normalmente não) presente em outros materiais didáticos e científicos. Nada tão surpreendente, vindo de quem veio, mas dizem que o diabo (que era um anjo, inclusive) mora nos detalhes.

A parte mais longa do livro é mais técnica e um pouco mais árida para se ler de forma contínua, mas segui com minhas leituras sem pular uma página. Fica menos narrativa e mais episódica. É quando Bagno fala sobre as classes de palavras. Mas não por meio de uma abordagem morfológica apenas: as palavras são dinâmicas e não se prendem a apenas uma classe gramatical. Dentro de cada capítulo ele fazia considerações sintáticas, semânticas e pragmáticas. Uma abordagem discursiva profunda. E ele não segue a tradição de dividir as palavras em 10 classes gramaticais: comenta sobre isso e aponta os limites e deficiências desse tipo de epistemologia. Ele mostra o que tem sido pesquisado e como essa divisão, que remonta aos gramáticos gregos, não se aplica mais hoje em dia.

Eu me divertia, refletia e aprendia. E algumas pessoas ao meu redor ficaram meio céticas de que eu leria aquele grande livro, que eu não aguentava nem segurar direito por muito tempo. Mas lia deitado, com ele apoiado no peito. Ouvia a voz de Bagno me contando os fatos da língua, as fofocas dos bastidores da linguística e a forma como nossa língua é poderosa, variada, rica. Me apropriava mais dela ao escrever, ao ler, lembrava de observar os fenômenos, de entender a poética e as relações estabelecidas. Os capítulos finais se voltam ao que (não) ensinar na escola, e comenta um pouco sobre alguns aspectos sociais da língua como a hipercorreção, o erro, algo que é bem caro ao autor em outras de suas obras. 

Como num relacionamento amoroso, fui conhecendo melhor nossa língua e me apaixonando por ela e pela experiência que eu estava tendo com a leitura. Mesmo com muitas demandas, lia algumas páginas, poucas que fossem, de noite, antes de dormir. Demorei muitos meses para encerrar, mas o livro foi me acompanhando também nas coisas que foram mudando na minha vida. Ele mudou de estado comigo, teve que ficar encaixotado, mas foi direto para a mesa de cabeceira. Em outra disciplina que dei no semestre seguinte àquele quando comecei a gramática, sugeri aos/às estudantes: comprem se puderem. É cara para um estudante, mas vale cada página. Fiquem de olho para promoções, feiras de livros, etc. Espero que quem seguiu meu conselho tenha uma leitura integral (o que acho meio improvável, pelo volume dele, e da leve loucura que foi) ou de fragmentos desse livro delicioso. Qualquer dia desses devo escrever para o autor, agradecendo pela oportunidade e desejando mais e mais obras como essa.


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