domingo, 6 de novembro de 2011

Enxurro

Abro os olhos e começo a escrever um ensaio sobre a minha cegueira. Andando pelas ruas desta cidade, domingo de noite, um vazio e o concreto, vidas nos bares de esquina, pessoas rindo e pessoas ali, vivendo, num mundo sujo e feio (pra mim) e meu mundo também. (por que eu deixo meu mundo ser sujo e feio?) caminho em direção ao teatro e sinto a minha pele meio que reagir com o ar poluído e fétido e o cheiro de cimento e mijo. Sou parte desta bagunça. Eu ando por ruas que nunca havia andado antes, e parece que eu estou num outro planeta, numa outra dimensão. Para onde vão todos os seres humanos num domingo ao cair do sol? Vejo poucos num cenário de muitos, já ouço os mil passos que caminharão por aqui em algumas horas. Sinto medo, mas eu sou fã de ficção científica, por isso a aventura me excita a continuar. Rumo ao teatro, sozinho. Ali, encontro outras almas sedentas de alguma coisa. Provavelmente a mesma coisa que eu. O que eu estou fazendo ali mesmo sozinho, em vez de estar em casa, em comunhão virtual, em companhias conhecidas? Não tem nada ali para eu conhecer. Vou ter que me bastar a mim mesmo. Olhos nos olhos é o que eles cantam. Posso te encarar então? Posso te enxergar? Pensar em você como um personagem em meio a esse cenário desolado? Vou vendo a progressão da peça que parece não levar a lugar algum. Eu não entendo nada. Entendo fragmentos. Olho em volta. Parece que eles foram longe demais desta vez. Por que eu me sinto tão burro? Seria só eu, ali no meio daqueles corpos que compartiam o mesmo espaço que meu corpo? Quantas mentes havia ali de verdade? As palavras e os sons e as luzes, eu quero devorar tudo aquilo. Eu entendo o futuro e o passado e vejo a mensagem anunciada do jeito que eu esperava. Não não do jeito que eu esperava, mas a mensagem é aquela. Essa sim, clara. Quando eu percebia que eu não entendia nada, daí eu percebi o que era pra entender. Eu ficava lembrando do livro, que eu já deveria ter lido, que eu deveria ter escrito. As vinhas da minha ira não são tão amargas quanto eu pensava. Eu me envergonho de mim mesmo. Vejo aqueles rostos conhecidos, quase amigos, que não me reconhecem, posto que sou só mais um, lembro das suas frases, dos seus movimentos. Quero agarrar aqueles corpos em movimento e cantar com eles as suas canções. Vejo o apelo em seus olhos. Eles acham que estamos entendendo. Estamos entendendo? Quem somos nós. Eu olho em volta e só tem eu, no meio de uma selva de pessoas que não existem, só ali. O espetáculo, por assim dizer, acaba. Eles abrem a porta e eu não consigo ficar mais nenhum minuto ali. Eu preciso sair do sonho, dessa realidade alternativa e voltar para a minha realidade brilhante, onde eu posso viver de verdade, onde eu posso ter em mãos a ferramenta que me une aos outros, que me traz conforto, que vibra sobre meus dedos finos e delicados, dedos de artista. Não quero ouvir nenhum comentário, porque não quero que roubem de mim a minha compreensão do que eu tinha acabado de ver. Eu entendi tudo, quando não entendia nada. Fui o primeiro a sair, meio fugido, pensando nas coisas que tinha sido ditas e cantadas, que força! Desci a rua, voltando por um caminho que não tinha sido o caminho da vinda. Tive medo de me encontrar vindo, e mandar que eu voltasse, antes mesmo de chegar. Olho na esquina e me vejo ali agachado, fuçando o lixo que se espalha sobre a calçada. Quanto lixo. Eu deixo que minha cidade seja assim suja, eu sou aquele lixo, eu não o recolho, então sou parte do que o espalha. Mais adiante, tentando esquecer o lixo, eu me fixo nos corpos que se oferecem, nos corpos que sentem fome e precisam ser comidos para poderem comer. Eu tento esboçar um boa-noite, mas talvez eles não entendam a minha língua. Eu tenho medo. Medo da sereia, e eu aperto o passo. Ouço risos mas não sinto a alegria. Outro que passa por mim em olha com desejo e eu sinto o cheiro da decrepitude. Eu peguei a rua diferente para fugir do meu passado e encontro o meu futuro. Ele olha com desejo e seu olhar grita: me ame, e eu tento responder que eu o amo, mas só consigo embaraçar num soluço e começar a chorar. Eu não quero ser assim. Mas ele me diz, eu não olho pra trás, ele me grita o nome e diz, assim será, assim será. Continuo andando e quase tropeço em uns farrapos que me pedem dez centavos. Eu agarro a minha nota de dez reais, que é tudo que tenho no bolso, ela me faz cócegas na mão e me conta em dez segundos uma longa história de um filme com um sul africano que me fez perder um pouco a esperança no mundo. Ele me mostrou que confiar significar perder, mas de novo, ele me mostrou que se há no mundo pessoas como eu, ele não se está de total perdido. Não que eu tenha agido com o melhor dos propósitos, nem que eu tenha sido o mais sensato dos intelectuais, muito pelo contrário. Mas eu vi. Tateando de novo os dez reais, lembrei de toda minha fortuna, do meu império, da minha espoliação. Sou um vendido. Mas quem não é? Justifico minhas fraquezas pela carne e pelo vinho, escuso minha casa própria, ou não tão propriamente assim, e respondo meio baixinho, não tenho dez centavos aqui comigo. A tristeza vai se tornando maior que eu e já não sinto medo nem nada. Ela já passa da altura dos olhos. Me afoga. Tento focar no chão e no céu, mas um tem muito lixo, o outro poucas estrelas. Tudo me aborrece e eu tento formular na minha cabeça uma música bonita, uma forma de entender tudo o que eu tou sentindo e vou tentando matar cada frase que se forma, um tanto quanto poesia, diriam, pra tentar entender o que está acontecendo. O passeio prossegue, mas eu já não tenho forças pra manter o passo forte, pra correr pra minha tenda, meu eldorado no sétimo andar, quente e macio, regado a creme de leite e memórias européias. Me lembro que em menos de um mês estarei desempregado. Ou semi. Que estarei livre, mas ao mesmo tempo, mais preso do que nunca às preocupações mundanas. Não consigo sentir medo, mas vejo rotas de fuga. Será que vou ter que perguntar pra alguém se ela tem dez centavos? Provavelmente não. Será que eu deveria agora, nesse momento abismado, pular no abismo e não voltar? Uma semana talvez, sumir e ficar aqui, fuçando o lixo e passando fome? Me senti com fome, mas percebi que comida nenhuma vai aplacar esse vazio. Tentei pensar no meu amor e ele servia como uma base, na qual eu sentia uma segurança, mas eu também usava essa base para me erguer acima da altura das cabeças da multidão e via lá longe um profeta nu, segurando o pinto entre as mãos e gritando: é tudo ilusão, é tudo ilusão. E essa pareceu a maior verdade, e ao ver que ela era assim, toda verdade, percebi que toda ilusão é toda a verdade, e vice-versa. Fui andando e ao chegar perto de casa a segurança foi se instalando, eu comecei a dizer boa-noite, porque as pessoas pareciam estar tendo uma noite melhor do que aquelas daquele deserto que eu tinha atravessado. Apertei o botãozinho e o clác das grades me assustou e eu pensei duas vezes se eu deveria mesmo entrar. Como um sinal daqueles e um olhar poderia me permiti ir a lugares que poucos poderiam ir? Você aí na sua cabine fumê não vê que eu sou outra pessoa? Quem era eu pra poder estar ali? Pura sorte. E oportunismo. Passei pelo porteiro e senti sua irritação que emanava como brasas de um vulcão ativo. Quase pedi desculpas a ele de tê-lo colocado ali. Não que eu tenha mesmo, mas pra ele deveria ser tudo igual. Eu lembrava agora do sonho do teatro, da linguagem que era a minha, mas não era. Das palavras inteligíveis cuja organização eu não entendia, dos movimentos dos corpos, chutando cadeiras e derrubando areia. Eu pensei em rezar, mas minha religiosidade tem sido meramente retórica. Queria abraçar um livro agora, mas minhas mãos estão nuas. Chego ao elevador e tento esboçar um sorriso, todo de plástico, e digo boa noite, quando na verdade vejo que é só mais gente que não sabe quem eu sou e não quer ver. São todos cegos, e ao vê-los assim, me sinto menos como eles, mas a cada andar que subo, me vejo menos no espelho. Giro rápido a chave e entro na casa de bonecas e eu já sou plástico e já sou rico e já estou de novo no meu mundo de verdade, na minha realidade que agora parece postiça como a peruca que querem que um dia eu use e que eu nunca jamais ousarei usar. Aperto o botão e sinto a luz invadindo meu olho e meus dedos nervosos querendo regurgitar estas palavras, eu me sinto morrendo e vejo que a morte é verdade, mas só ilusão. Vejo que me perdi pelo caminho, pelas ruas sujas e feias desta minha cidade, num domingo a noite, uma semana que morre, uma outra que começa. Morre a semana do dia dos mortos e eu aqui, meio vivo meio morto, tentando viver uma vida de plástico, pensando que amanhã toda a realidade será sonho e meu sonho será realidade. (Apesar de parecer, não, isso não é o fim).

Um comentário:

  1. Hey you!!
    fazia tempo que não lia algo tão forte, tão intenso e marcante:) Estava sentindo falta.Não que não gostasse da fase "All you need is love",hahhahaha, mas este tem mais conteúdo, mais sentimentos e coisas implícitas.Amei .bjs

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