quarta-feira, 20 de outubro de 2010

De lírios - Parte IV

(continuação da parte III)

Ela sente o frio se esvaindo e o calor vai dando lugar àquela gélida sensação. Porém, ela percebe que não está mais parada. Sente-se em movimento, e o calor vai aumentando. Pouco pode se ver dos arredores, algumas fontes de iluminação esparsas lutando contra a escuridão noturna, como vaga-lumes. Ela sente o calor aumentar e se percebe correndo. Ainda sem entender direito o que se passava, sente medo, um medo primitivo, primata, e ouve como um sino a ribombar em sua cabeça “Corra, corra!”. Ela conhece aquele caminho estranho sinuoso, sente suas pernas fatigadas a levarem para aquele lado, ora para o outro. Ela ouve e percebe que não está sozinha. Ela é a caça. Um, dois lobos a perseguem, rindo como hienas, famintos como leões. Ela decide que logo será alcançada. Procura um refúgio. Fazer-se de morta pode enganar os predadores. Ali, um muro baixo, com o mesmo impulso que trazia da corrida, apóia-se em uma das mãos e joga os pés para o alto. Porém, os pés não encontram o chão conhecido, e ela rola em si mesma, se esfolando toda. Arfando, busca levantar a cabeça, e na penumbra distingue onde se encontra. Trata-se de um jardim. Há alguns metros divisa uma casa, vê as luzes saindo da janela e pensa ouvir gargalhadas, copos. Talvez seja uma festa. Seu corpo vai esfriando enregelado pelo ar da noite, e ela sente dores por todo corpo, provavelmente presentes da queda. Estica a mão e toca em alguns arbustos baixos e ao trazer a mão ao rosto para secar a testa,e se apoiar pra sentar, sente o cheiro de lírios. Nesse instante, ela se sente erguida ao ar. Uma mão invisível, não, mãos invisíveis vão a tateando, a levantam e a afastam daquele momento de alívio. Os predadores a viram escapar, seguiram seus rastros. Ela havia falhado. Ela sente o cheiro de suor forte e masculino, e se vê imobilizada. Enxerga no escuro o brilho maligno dos olhos deles, seus sorrisos e escuta: “Aê, truta, nóis se demo bem!” Sente que não pode mover os braços, pois uma mão de aço as matem presas. Ela geme, se contorce, pensa em gritar, mas nem bem abre a boca e um grito começa a se formar, ela sente outra mão, quente e suja, áspera, contra sua boca. Sente o batom se espalhando por toda a face e o grito preso na garganta. Ela decide arrefecer e percebe que o inimigo já canta vitória certa. Sente mãos por todo seu corpo, perscrutadoras, invasivas. Ela sente e vê sua vontade reduzida a pó e fica a mercê daquelas mãos, daquele cheiro repulsivo, daquele peso contra seu corpo. Seu estomago se contrai e ela quer vomitar. Mas não consegue. Começa a sentir as lágrimas quentes escorrerem, salgando o já inseparável gosto de sangue e batom. Ela se vê invadida, humilhada, e fecha os olhos, para que não seja testemunha daquela atrocidade contra si mesma, e ao lembrar-se do cheiro dos lírios, vai se entregando a um frio, e sente que aquela repulsa vai dando lugar a uma grande paz. Ela já não sente mais medo. Mas ao abrir os olhos, ela não se sente confortável. Outra realidade, outro corpo, que ainda não é o dela. Estica as mãos e sente estar dentro de uma jaula...

(continua...)

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